Torne-se perito

Os filmes chunga de que Tarantino gosta

O festival Grindhouse, em Hollywood,
é uma celebração do cinema que na verdade
construiu um realizador de culto

a Alguns miúdos adoram a Disneylândia, mas para o pequeno Quentin Tarantino o mais feliz dos lugares na Terra foi sempre um obscuro cinema de Los Angeles. Era aí que podia ficar sentado no escuro a ver samurais ensanguentados, chulos perigosos e noivas zombie. A sua busca incessante da próxima matiné levava-o por vias rápidas a bairros distantes, e é por isso que Tarantino conhece a cidade tão bem como as costas de uma mão amputada.Às vezes, o realizador até tem dificuldade em dizer onde acaba o ecrã de cinema e começa a verdadeira Los Angeles.
"Um dia estava no World Theater a ver um filme de blaxpoitation [filmes de baixo orçamento com sexo e violência em excesso, e protagonistas negros] chamado Death Force. O cinema era no Hollywood Boulevard. Então eu estava a ver este filme sobre dois gangs em guerra para controlar Los Angeles. Andavam a matar-se uns aos outros. Bem, então há dois membros do gang a descerem o Hollywood Boulevard e um carro pára e mata-os a tiro mesmo em frente do cinema em que eu estava sentado! Eu tinha p"ra aí 16 anos e até hoje continua a ser um dos grandes momentos da minha vida."
Ninguém mistura cinema de autor e talho como Tarantino. E agora, aos 43 anos, está a pagar um tributo aos velhos filmes de exploitation [iguais a blaxpoitation mas sem negros] que foram a sua musa: no domingo começou o Festival Grindhouse de Los Angeles, uma retrospectiva de 50 filmes delirantemente maus, com títulos como O Hércules Chinês ou A Lenda da Mulher Loba. Para os não iniciados, grindhouse designa os pequenos cinemas que "moíam" (grind) os projectores passando três filmes, entre eles reposições, fitas de baixíssimo orçamento e curiosidades em língua estrangeira.
Os filmes que vão passar no New Beverly Cinema são todos cópias da filmoteca pessoal de Tarantino e, mais importante, das bobinas que rolam na cabeça e no coração dele. A semana passada, o realizador fez uma pausa no seu trabalho (para o seu próximo projecto) para falar sobre o festival e dar uma volta pela sua Los Angeles, aquela onde ele vive e a que vive nos filmes dele.
Não é do tipo calado
Tarantino conduz um Ford Mustang amarelo e preto a condizer com as cores de combate da personagem de Uma Thurman nos filmes Kill Bill. O realizador é tão discreto como o automóvel. Enquanto procurava um lugar para estacionar no Sunset Boulevard, prestou mais ou menos a mesma atenção ao rádio e à estrada.
Fala depressa e alto, as respostas são à queima-roupa e os lugares silenciosos parecem torná-lo nervoso. É uma das razões por que escreve bastante no Toi, no Sunset, o restaurante tailandês que é tão sossegado como a zona de mosh num concerto. "É o melhor lugar para comer depois das duas da tarde", diz Tarantino, depois de estacionar o Mustang e de pedir um prato de caril de vegetais e uma taça da saké quente. O Toi está na moda entre quem está na moda em Hollywood, mas não era dele que Tarantino queria falar e sim de um cinema em Carson que desapareceu há muito tempo.
"O Carson Twin Cinema era mesmo o perfeito cinema grindhouse. Pertencia a uma família, o gerente era um tipo italiano fixe, e ficava no centro comercial Scottsdale", diz. "Passavam sessões duplas de filmes do Bruce Lee três vezes por ano porque esgotava sempre."
O cinema tinha o chão pegajoso e havia muitas zaragatas. Era o sítio onde, quando passou a conseguir entrar em filmes para adultos, Tarantino havia de passar os fins-de-semana a encharcar-se em fitas de horror italianas, filmes porno só com raparigas e um desfile sem fim de combates de kung-fu. As frases que Tarantino ouvia de outros frequentadores marcavam-no tanto como as tiradas chunga dos filmes; os epítetos raciais, as conversas sobre droga e as asneiras ensinaram-lhe as falas das suas personagens em Pulp Fiction, Reservoir Dogs e Jackie Brown.
Como Hitchcock e Lee
"Nunca vou ter vergonha de nada, escrevo sobre aquilo que sou, é mais a minha versão da verdade tal como a conheço", responde Tarantino. "Isso faz realmente parte do meu talento - pôr a maneira como as pessoas falam nas coisas que escrevo. A minha única obrigação é para com as minhas personagens. E elas vêm dos sítios onde eu estive."
A mãe de Tarantino só tinha 16 anos quando ele nasceu, e quando ele próprio chegou àquela idade largou o liceu de Narbonne, em Harbor City, para procurar fazer carreira como realizador. Uma dúzia de anos depois atingiu a fama com Cães Danados, em 1992, e, juntamente com Alfred Hitchcock e Spike Lee, é um dos poucos realizadores que moldaram uma personalidade de ícone pop tão grande como os seus próprios filmes. Seja aparecendo como actor nos seus filmes ou a apresentar os Grammys, Tarantino é reconhecível como frenético, um bocado maluco.
A sua história de amor com o cinema começou quando era jovem, e foi desde o início um bocado assustador. "O primeiro filme que fui ver, que me lembro de ir ver, foi Aeroporto. Tinha para aí quatro ou cinco anos. Foi uma coisa mesmo importante, OK? Os meus pais é que me levaram. Eram muito novos. Fomos a Hollywood e andámos para cima e para baixo no Hollywood Boulevard, e era assustador. Quero dizer, para mim parecia que havia muito perigo, por isso não me afastei dos meus pais. Mas depois houve um momento em que parei para olhar para uma montra e eles continuaram a andar..."
Nesta altura, Tarantino agita os punhos. Os olhos aumentam de tamanho, tomam um ar louco, mais do que o habitual. "Voltaram para trás e apanharam-me. Mas imagine se eu tivesse dado a volta e eles não estivessem lá!"
Obras inspiradoras
Enquanto cinema, o New Beverly é como um bar sem licença para vender bebidas ou bancos altos. Tarantino passou por lá depois da refeição no Toi e havia uma mulher de curvas generosas no passeio a mostrar-se a quem passava. Na entrada do cinema, Rudy Ray Moore, velha estrela de filmes de blaxpoitation, dava autógrafos a jovens que tinham ido ver nessa noite a projecção de um dos seus filmes.
Tarantino nota que adoraria estar presente todas as noites para apresentar cada um dos filmes do festival, mas está muito apertado de tempo para acabar Death Proof, a sua metade de uma colaboração de dois filmes com o amigo realizador Robert Rodriguez que estreará a 6 de Abril (numa sessão dupla com o título global... Grindhouse). Enquanto Planet Terror, de Rodriguez, trata de extraterrestres em estado de fúria assassina, Death Proof gira à volta de carros musculados e lutas a soco. Embora esteja muito distante, pela ironia, dos filmes chungas que vão passar no New Beverly, a verdade é que a sua origem sórdida é a mesma.
Na verdade, o festival é uma maneira de Tarantino chamar a atenção não só para o seu novo filme mas também para as obras que o inspiraram. E programou alguns dos seus favoritos para o final de Abril, para poder apresentá-los e explicar por que são tão maravilhosamente maus. Tarantino nota que um terço dos filmes do festival foi realizado na área de Los Angeles e que olhar para o cenário onde se desenrolam é uma espécie de lição de história.
"Os filmes de exploitation eram feitos de uma maneira tão pouco artística... com estes planos imensos de Sunset Boulevard, ou de Arcádia, ou da Baixa de LA, ou de outro lado qualquer. Nos filmes a sério, especialmente nos anos 1980, a Los Angeles que se via não era a verdadeira; era uma personagem com esta espécie de atmosfera de cenário. Tentavam dar-lhe um ar luxuoso. Nos filmes de exploitation via-se como o lugar realmente era, os bares e os restaurantes familiares."
Os filmes do realizador Al Adamson, por exemplo, são "quase antropológicos", nota Tarantino. O homem que fez Cérebro de Sangue e As Hospedeiras Atrevidas pode não ter tido verdadeiro talento, mas a câmara dele captava a realidade de uma maneira que os filmes de grande orçamento não conseguiam. "Estava a ver um e havia esta cena no parque de estacionamento onde fica agora o ArcLight. E nem queria acreditar. O Kentucky Fried Chicken na Vine Street, perto de Sunset, está lá há 25 anos!"
Tarantino costumava apanhar o autocarro para lugares remotos de Los Angeles à procura de filmes que o ensinassem coisas sobre violência, sexo e cultura. Ainda por lá anda muito, mas agora é geralmente para ver os seus filmes em diferentes ambientes culturais. "Gosto de ir aos cinemas Magic Johnson e ver lá os meus filmes. Gosto de os ver nos subúrbios, e na Baixa, só para ver como as audiências reagem."
Tarantino é tão fã de cinema como é realizador, e até já pensou comprar um cinema em Chinatown para ter um sítio só seu onde projectar filmes de kung-fu. Gostar de passar por espectáculos onde entregam prémios, coisas da indústria, festivais de cinema e convenções, qualquer lugar onde possa estar próximo de um público a quem passar a sua versão do que é cultura pop. Frente ao New Beverly, do outro lado da rua, na fila para comprar um café no Starbucks, perguntaram-lhe porque passa tanto tempo em frente à câmara. "Penso que, nos próximos anos, as pessoas dirão: "Aquele tipo é que tinha razão. Os filmes dele são os únicos que ainda contam"."
A verdadeira LA
Tarantino não canta bem, mas isso não o impede de cantar. Quando lhe pergunto qual a sua canção favorita sobre Los Angeles, pensa um bocado e depois começa a entoar uma velha canção de Ry Cooder, Bop till you drop.
Raymond Chandler criou uma LA de ficção que de certa forma ajudou a tornar mais real a actual cidade. Tarantino fez isso com os seus filmes. Em Jackie Brown, por exemplo, quase todas as cenas se passavam a 15 minutos de distância do aeroporto de Los Angeles e Tarantino procurou longamente o apartamento certo para a sua personagem principal, uma hospedeira. "Precisava de um lugar onde ela pudesse pagar a renda, mas que também fosse suficientemente grande para nós podermos rodar lá. Os pormenores, as coisas verdadeiras, é isso que quero."
Um dos seus momentos de maior orgulho: em Cães Raivosos, dois dos seus assassinos discutem sobre a zona de Ladera Heights, que um descreve como uma espécie de Beverly Hills para negros. O parceiro corrige-o: não, é mais como Palos Verdes para negros. "Vi isto em Roma, num teatro, e comecei a rir. O filme passou em todo o planeta, e quantas pessoas perceberam a piada? As pessoas de LA perceberam, e eu adorei."

Exclusivo PÚBLICO/Los Angeles Times The Mack e The Chinese Mack abriram o festival este fim-de-semana. A partir de hoje e até Abril, são estes alguns dos gostos do realizador.

7 e 8 Machine Gun McCain e Wipeout! 9-10 The Van, Pick-Up Summer e Summer Camp
11-13 Rolling Thunder e The Town That Dreaded Sundown
14-15 Chinese Hercules e Black Dragon
16-17 Sex With a Smile, Sex on the Run e The Oldest Profession
18-20 Brotherhood of Death e Johnny Tough
21-22 Autopsy e Eyeball
23-24 Coonskin, Shame of the Jungle e Tunnel Vision
25-27 Pretty Maids All in a Row e Revenge of the Cheerleaders
28-29 Fearless Fighters e SuperManChu
30-31 The Blood Spattered Bride, Asylum of Blood e Mary, Mary, Bloody Mary
Abril 1-3 The Lady in Red e Bare Knuckles
4-5 The Female Bunch e Wonder Women
6-7 White Line Fever e Return to Macon County
8-10 The Girl From Starship Venus e The Legend of the Wolf Woman
11-12 Slithis e Screams of a Winter Night
13-14 Hot Summer in Barefoot County e Redneck Miller
15-17 The Muthers e Fight for Your Life
18-19 Dragon"s Vengeance e Kung Fu: The Punch of Death
20-21 The Swinging Barmaids, The Swingin" Pussycats e The Swinging Cheerleaders
22-24 Grave of the Vampire e Jailbait Babysitter
25-26 Return of the Tiger e Stoner
27-28 Death Rage e Cry of the Prostitute
29-30 The Real Bruce Lee e Lee Lives Within

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