Uma história de amor e trevas
É um relato de memórias pessoais, da família, de um país. Uma saga. Uma história de Amor e Trevas (ed. ASA) é posto à venda dia 12. Amos
Oz, nascido em Jerusalém em 1939,
é entrevistado no próximo ípsilon
a Quando atingi a idade em que a minha mãe me podia falar da sua infância e juventude e dos primeiros tempos no país, ela já não estava interessada naquilo e tinha outras preocupações. As histórias de embalar que me contava antes de dormir eram povoadas de gigantes, de fadas, de bruxas, para além da mulher do camponês e da filha do moleiro, de cabanas abandonadas no coração da floresta.Quando me falava do passado, da casa dos pais, do moinho, da cadela Frima, havia na sua voz algo de amargo e desesperado, um pouco ambivalente, vagamente sarcástico, uma espécie de ironia contida, algo demasiado complexo ou velado para eu perceber, provocante e inquietante.
Devia ser por isso que eu não gostava do que ela dizia e estava sempre a insistir para ela me contar algo de mais claro e próximo de mim, como a história das seis mulheres encantadas de Matvei, o aguadeiro, ou a do cavaleiro morto que continuava a atravessar continentes e cidades sob a forma de esqueleto com couraça, capacete e esporas de fogo.
Não sei quase nada sobre a chegada da minha mãe a Haifa, os seus primeiros tempos em Telavive e primeiros anos em Jerusalém. Por isso, reproduzirei aqui parte do que a tia Sónia me contou: como e por que é que veio para Israel, o que esperava encontrar e o que encontrou realmente.
"No liceu Tarbut aprendemos não apenas a ler, a escrever e a falar hebraico correctamente - correcção que a vida entretanto se encarregou de estragar -, Bíblia, "Mishna" e poesia medieval, como também Biologia, Literatura e História polacas, Arte da Renascença e História da Europa. Aprendemos, em particular, que para lá do horizonte, para lá do rio e da floresta, existia uma terra para a qual em breve teríamos de ir, porque o tempo dos Judeus na Europa ou, pelo menos, o dos Judeus da Europa Oriental, estava a terminar.Que esse tempo estava a terminar sentiam-no muito mais os nossos pais do que nós: mesmo aqueles que tinham enriquecido, como o nosso pai e as famílias que tinham construído em Rovno fábricas modernas, ou que eram médicos, advogados ou engenheiros, mesmo aqueles que tinham boas relações com as autoridades e com os intelectuais da cidade, mesmo esses sentiam que estávamos a viver sobre um vulcão, entalados entre Estaline, Grabski e Pilsudski.
No que respeita a Estaline, já sabíamos que ele queria eliminar os Judeus da terra pela força, a fim de que todos se tornassem bons komsomolniks e se delatassem uns aos outros. A atitude da Polónia, por outro lado, era de repugnância pelos Judeus, como alguém que tivesse mordido um bocado de peixe podre e não conseguisse engoli-lo nem vomitá-lo. Não tinha coragem para nos vomitar depois do Tratado de Versalhes, dos direitos das minorias, dos princípios de Wilson, da Liga das Nações, nos anos vinte a Polónia ainda tinha vergonha: queria a todo o custo ser bem-vista. Era como um bêbado a tentar andar direito para não verem que vacila. Queria fazer parte da família das nações. Mas, à socapa, os Polacos oprimiam-nos, humilhavam-nos e maltratavam-nos para irmos para a Palestina e nunca mais nos verem. Era por isso que chegavam a estimular a educação sionista e os liceus hebraicos: que nos tornássemos uma nação, tudo bem; o principal era que desaparecêssemos para a Palestina, e se vissem livres de nós.
O medo que reinava em todas as casas judias, um medo do qual quase nunca se falava, mas que nos era sub-repticiamente instilado, como um veneno, gota a gota e a todo o momento, era o pânico de não sermos suficientemente limpos, de sermos demasiado barulhentos, arrivistas, espertos e gananciosos. De não termos boas maneiras. Tínhamos um pavor de morte de causar má impressão sobre os góis, de que eles se zangassem e nos fizessem coisas horríveis sobre as quais mais vale não pensar.
Martelavam vezes sem conta a cabeça dos miúdos judeus de que deviam comportar-se bem com eles, mesmo que eles fossem grosseiros ou estivessem bêbados, que nunca deviam fazê-los zangar, nem discutir com eles ou fazer finca-pé sobre os preços, que era proibido irritá-los, levantar a cabeça, que devíamos falar sempre com eles baixinho e com um sorriso, para eles não dizerem que éramos barulhentos, e exprimir-nos sempre num polaco o mais correcto e puro possível, para não dizerem que lhes corrompíamos a língua, mas também não demasiado elevado, para não nos acusarem de querermos trepar demasiado alto, e não dizerem que éramos gananciosos, e Deus nos livre de termos uma nódoa na saia. Em resumo, tínhamos de fazer o possível por lhes causar uma boa impressão, e não os desiludir nunca, porque bastava um único miúdo não lavar bem a cabeça e ter piolhos para estragar a reputação do povo todo. De qualquer modo, eles não nos suportavam e mais valia não lhes dar mais motivos de ódio.
Vocês, que já nasceram no país, não podem compreender como aquele gota a gota pervertia todos os sentimentos, como devorava a nossa humanidade, aos poucos, como a ferrugem, tornando-nos hipócritas, mentirosos e dissimulados como os gatos. Eu não gosto nada de gatos. De cães também não. Mas, se tiver de escolher, prefiro os cães. O cão é como o gói, vê-se logo o que pensa e sente. O judeu, na diáspora, era como um gato, no mau sentido, se entendes o que quero dizer.
Mas temíamos acima de tudo a populaça. Do que podia acontecer entre dois regimes, se por exemplo os Polacos fossem afastados e os Russos tomassem o seu lugar: tínhamos medo dos bandos de Ucranianos, de Bielorrussos, da turba polaca exaltada, ou, mais a norte, dos Lituanos, que podiam surgir entre uns e outros. Era um vulcão do qual escorria constantemente a lava e que exalava em permanência um cheiro a fumo. "Eles afiam as facas no escuro", dizia-se entre nós, sem especificar quem, porque tanto podiam ser uns como outros. A multidão. Aqui no nosso país a multidão também é uma espécie de monstro.
Só não temíamos os alemães. Lembro-me de que em 34 ou 35 - eu tinha ficado sozinha em Rovno para acabar os estudos de Enfermagem -, ainda havia entre nós quem dissesse "oxalá tivéssemos aqui um Hitler, pois com ele, pelo menos, há lei e disciplina e cada um sabe manter-se no seu lugar, e o que importa não é o que Hitler diz, mas que ele seja capaz de manter na Alemanha uma ordem como deve ser e que a populaça trema diante dele. O que é importante é que com Hitler não há desordem nas ruas nem anarquia" - nessa época ainda se considerava que a anarquia era a pior situação: o que mais os aterrava era que os padres se lembrassem de começar a pregar nas igrejas que o sangue de Jesus corria de novo por culpa dos Judeus, que desatassem a tocar os sinos a rebate, os camponeses ouvissem e enchessem a pança de aguardente e pegassem nos machados e nas foices, era assim que as coisas começavam sempre.
Ninguém imaginava o que realmente viria a acontecer, mas já nos anos vinte quase toda a gente tinha uma consciência clara de que não havia futuro para os Judeus nem com Estaline, nem na Polónia, nem em toda a Europa de Leste, e foi por isso que a ideia da Palestina se tornou mais forte - não em toda a gente, claro está, os ortodoxos, por exemplo, opunham-se com muita força, tal como os bundistas, os iídichistas, os comunistas e os assimilados que já se consideravam mais polacos do que Paderewski e Wojciehowski, mas a maioria das pessoas comuns, nesses anos, em Rovno, queriam que os filhos aprendessem hebraico e frequentassem o liceu Tarbut. Os que tinham dinheiro mandavam os filhos estudar no Técnico, em Haifa, ou no liceu em Telavive, ou nas escolas agrícolas em Israel, e os ecos que nos chegavam de lá eram simplesmente extraordinários - os jovens esperavam ansiosamente pela sua vez. Entretanto toda a gente lia os jornais em hebraico, discutia, cantava canções hebraicas, declamava poemas de Bialik e de Tchernikhovsky, distribuía-se por imensos partidos e grupos, fazia uniformes e bandeiras, havia um enorme entusiasmo nacional. Era muito semelhante com o que hoje se passa com os Palestinos, mas sem o derramamento de sangue. Hoje no povo judaico já quase não se vê um tal nacionalismo.
Sabíamos, naturalmente, que a vida no país era muito difícil: que fazia muito calor, que era deserto, que havia pântanos, falta de trabalho, e que nas aldeias viviam Árabes pobres, mas no mapa grande que estava pendurado na nossa sala de aula víamos que os Árabes não eram muito numerosos, talvez meio milhão, decerto menos que um milhão, e tínhamos a certeza de haver lugar para mais alguns milhões de Judeus, que os Árabes eram atiçados contra nós, como a arraia-miúda na Polónia, mas que seria possível explicar-lhes e convencê-los de que nós seríamos uma bênção para eles, a nível económico, médico, cultural, etc. Pensávamos que daí a pouco tempo, mais uns anos, os Judeus seriam a maioria no país - e então daríamos a todo o mundo um exemplo de comportamento para com a nossa minoria, os Árabes: nós, que sempre fôramos uma minoria oprimida, havíamos certamente de ter com a minoria árabe uma relação íntegra e justa, generosa, e partilharíamos a nossa pátria com eles, partilharíamos tudo com eles e jamais faríamos deles gatos. Era um belo sonho.
Em todas as salas dos jardins-de-infância, das escolas primárias e dos liceus Tarbut havia uma fotografia grande de Herzl, um grande mapa do território de Dan a Beersheva, com as colónias dos pioneiros assinaladas, uma caixa para donativos para o Fundo Nacional Judaico, pinturas dos pioneiros a trabalhar, e muitas palavras de ordem com excertos de poesia. Bialik veio duas vezes a Rovno, tal como Saul Tchernikhovsky e Asher Barash também, parece-me, ou talvez fosse outro escritor. Os dirigentes da terra de Israel também vinham a Rovno quase uma vez por mês, Zalman Rubashov, Tabenkin, Yaakov Zerubavel, Zeev Jabotinsky.
Organizávamos grandes desfiles em honra deles, com tambores, bandeiras, balões, grinaldas em papel, cheios de entusiasmo, palavras de ordem, braçadeiras e canções, o próprio presidente da Câmara polaco vinha à rua saudá-los, e assim tínhamos a impressão de também sermos um povo e não apenas lixo.