Perto da loucura e do silêncio

Foi o oboé que deu fama a Heinz Holliger. Conhecido por ser um grande intérprete deste instrumento de sopro, a sua carreira paralela de compositor ficou sempre em segundo plano. E, no entanto, Holliger é um compositor muito interessante, como ficou provado neste estranho mas magnífico concerto em que apresentou, em pessoa, uma obra sua: o ciclo Scardanelli (Scardanelli-Zyklus, na sua primeira audição em Portugal). Scardanelli é um nome de autor fictício para Friedrich Hölderlin, o extraordinário poeta do primeiro romantismo alemão. Sob o pseudónimo de Scardanelli, Hölderlin escreveu, na última fase da vida, que muitos consideram ser um período de loucura, pequenos poemas a pedido de amigos que o visitavam no seu recolhimento em Tübingen. Assinava "com humildade, Scardanelli" e colocava nos poemas datas inventadas, entre 1648 e 1841 (Hölderlin viveu entre 1770 e 1843).A obra é construída como um ciclo, que percorre as estações do ano três vezes. Juntam-se a estas estações outras 12 peças, num total de 24 partes. É difícil caracterizar o estilo da obra, porque ela resiste precisamente à estilização e procura questionar a aparência estética, mergulhando os ouvintes numa materialidade do som, por vezes perturbante. A maior dificuldade, para o ouvinte, é não ficar à superfície dos sons nem agarrar-se a sentidos imediatos a que a música constantemente foge. Mas também não se trata de um eclectismo vazio, nem de um saltitar entre géneros. Holliger percorre um caminho muito próprio que não se pode resumir a um estilo. A obra resulta de uma espécie de diário musical que Holliger escreveu entre 1975 e 1985, e as peças partem dos poemas de Scardanelli que, loucos ou não tanto, impressionaram muito o compositor.
O processo de composição parece estar à mostra, de tal forma são transparentes as suas partes e se ouvem a carne e o osso de algumas das peças. Para além disso, há um processo de desconstrução permanente da música, por vezes mesmo de destruição. Há uma subjectividade que opta em vários momentos por retirar-se, quando o maestro deixa de dirigir, quando a música desemboca em silêncios, num cantar "para dentro" (no momento da inspiração e não da expiração), ou em palavras que devem ser ditas "com a boca fechada". Aquilo que parecem repetições são afinal novas desconstruções de materiais anteriores. Desaparecem certos sons. E assim aparecem outras coisas que antes estavam escondidas.
As vozes do Vokalensemble Stuttgart fizeram um trabalho notável e conseguiram ser expressivas, mas longe do dramático ou do cómico. A obra recusa esse salto "teatral", para concentrar os esforços numa espécie de desmontagem permanente dos sons, paciente, longa, muito exigente para o ouvinte. Mas valia a pena. Já perto do fim, Félix Renggli, um grande músico, fez um solo de flauta absolutamente fabuloso: soprou, assobiou, inspirou, expirou, numa das belas peças do ciclo intitulada (t)air(e), título que brinca com "calar" e "ar". E o silêncio cantou.

Pedro Boléo

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