Gaston Lagaffe nasceu há 50 anos na redacção do Spirou

A genial criação do desenhador Franquin
foi o primeiro anti-herói da banda desenhada popular franco-belga.
O humor delirante da série deixou marcas

a Sem legendas, a preto e branco e com a imagem rodeada de pegadas. Foi assim que Gaston Lagaffe apareceu pela primeira vez, há 50 anos, no número 985 da revista de banda desenhada Spirou.O dia exacto da estreia foi 28 de Fevereiro, data de saída da revista semanal das edições Dupuis, que ainda continua a publicar-se. Mas a celebração deste meio século já começou há mais tempo, com uma grande exposição sobre O Mundo de Franquin, patente em Bruxelas desde Outubro. Hoje será posto à venda um álbum comemorativo da efeméride (Gaston 50). E para que os habitantes da capital belga não esqueçam o seu filho adoptivo (Franquin, o criador, era belga), um mural permanente com três metros de altura está desde ontem em frente do edifício da Ópera.
Na segunda semana de publicação, Gaston aparecia no meio do folhetim de Paul Berna já sem o laço. O traje formal, mais consentâneo com o estatuto de um empregado de escritório, deu rapidamente lugar ao vestuário que o imortalizou - camisola verde de gola alta pequena demais, jeans coçados e alpercatas.
A ideia foi apresentada por Franquin a Yvan Delporte, na altura chefe de redacção da revista Spirou: "Um personagem de BD que não aparecesse em nenhuma banda desenhada porque, ao contrário do herói, não teria nenhuma qualidade, seria estúpido, mas nada bonito ou forte". Delporte ficou entusiasmadíssimo e Gaston nasceu como um "herói sem emprego", alguém que "ninguém queria ver numa banda desenhada, tão desprezível ele era".
O ambiente em que o personagem se movimenta é a redacção da própria revista. Spirou pergunta-lhe o que está ali a fazer e Gaston responde que não sabe. Pior ainda, não tem a menor ideia de quem o contratou...
Como estava fora de questão transformar Gaston numa BD, o seu percurso na revista foi errático nos primeiros meses e só no final de 1957 passou a ser protagonista de gags e a dispor de uma meia-prancha, formato em que se apresenta até hoje.
Universo delirante
Ajudado nos primeiros anos por Jidéhem, que assegura os cenários da série até 1968, Franquin foi construindo a pouco e pouco um universo sólido e coerente. É o próprio patrão da editora, o senhor Dupuis, quem lhe define as funções - estafeta da redacção. Essa qualidade permite a Gaston travar conhecimento, quase sempre em circunstâncias altamente problemáticas, com os restantes colegas: o nervoso Fantásio, que por vezes sai de cena para viver aventuras com um certo Spirou; o stressado Prunelle, a histriónica M"oiselle Jeanne, que não esconde um fraquinho pelo "senhor Gaston"; o desenhador Lebrac; diversas secretárias chamadas Sonia, Yvonne ou Suzanne, etc.
Num ambiente de trabalho que mais parece um manicómio em ponto pequeno do que a redacção de uma respeitável revista de banda desenhada, destaca-se o colérico De Mesmaeker, que chega para assinar misteriosos contratos mas nunca o consegue fazer. Uma gaivota que renunciou ao mar e um gato meio chanfrado são os eternos cúmplices de Gaston, amigo dos animais, sonhador e inventor nas horas vagas (que, aliás, são todas) - as performances do seu Fiat 509 preso por arames ou as experiências sonoras com o temível gaffophone ganharam o direito a constar nos anais das mais famosas partes gagas da BD...
Gaston começou por ser "o homem das gafes", assim o descreveu o seu próprio criador no jornal francês Libération: "Gaston tem a sua ideia pessoal do progresso, mas que não é de uma eficácia total. É uma criança numa profissão de adultos."
Como todas as criaturas, o herói acabou por escapar um pouco a quem lhe deu vida, para se tornar num ícone que "marcou o conjunto da sociedade", sublinha Laurent Mélikian, jornalista e crítico de BD na revista L"Echo des Savanes: "É o primeiro anti-herói da BD popular. Com ele, chegou o direito à preguiça e a recusa do trabalho embrutecedor".
Didier Pasamonik, chefe de redacção do site ActuaBD, destaca na série a "crítica do sector terciário que em 1957, começava a assumir importância": "Gerações de "funcionários" reconheceram-se naquele escritório. Apesar da ausência de telemóveis e de computadores, os seus temas continuam a ser hoje muito modernos."
O investigador português de BD Leonardo de Sá fala num "humor desopilante" e na "impossível inventiva do protagonista", acrescentando que "o mundo seria mais tristonho se Gaston não existisse". Um exemplo? "Não teríamos nunca encontrado a receita do bacalhau com morangos".
A importância do herói pode ser medida pela influência nos criadores das gerações seguintes, de Cauvin-Hardy (série Pierre Tombal) a Fane (Joe Bar Team), Ptiluc (Rats), Pétillon (Jack Palmer) ou Zep (Titeuf). Todos eles poderiam, sem grande problema, fazer suas as palavras do crítico francês Yves Frémion: "Ele [Franquin] é o que a BD belga deu de melhor".

Textos integrais dos depoimentos em http://www.publico.clix.pt/docs/bd/gastonlagaffe.pdf

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