Columbano inventou a pintura moderna
Abre hoje no Museu do Chiado, em Lisboa, uma retrospectiva do primeiro moderno português. Pedro Lapa, director do museu, escolheu cinco quadros e explica porquê
Convite à Valsa, 1880Óleo sobre cartão, 26x21,5cm
O Convite à Valsa faz parte de um conjunto de pinturas que Columbano pintou em 1880 e que alteraram por completo a sua relação com a pintura. Assumem uma modernidade total: a mancha solta-se e planifica-se na própria pintura. A cena narrada por esta pintura é verdadeiramente complexa e, ao mesmo tempo, irónica e anedótica. Um jovem convida uma rapariga a dançar, enquanto um senhor de idade, ao lado, dorme no sofá e a amiga da rapariga, que passa por trás, lhe pisca o olho. De certo modo, é um jogo um pouco perverso da vida burguesa tradicional, mas é feito com uma economia de meios mínima. Columbano não teve necessidade de entrar em grandes pormenores, são apenas os sinais mais sintéticos que descrevem a complexidade de situações. Tudo o que está à volta da cena é apenas um movimento puro de pintura. Veja-se como os vestidos e as próprias caudas se desfazem na pincelada puramente gestual, quase abstracta, assumindo a tal modernidade radical de que ele era acusado na época.
No meu Atelier, 1884
Óleo sobre madeira, 34x64
Pintura de período em que Columbano assume maior radicalidade. É um dos primeiros auto-retratos ao espelho, que não esconde a presença do espelho, permitindo alargar o auto-retrato ao contexto do trabalho do artista - o atelier. É a pintura de uma outra pintura, eleita e convocada aqui como exemplo da sua pintura, o retrato do sobrinho Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro (atrás). A própria posição do artista é curiosa, uma vez que ele se inclina para o lado direito da pintura, dando lugar a um contra-balanço feito por uma caveira que evoca uma Vanitas. E assim entre o artista vivo e este símbolo, (Vanitas), há uma reflexão sobre a vida, a morte e o trabalho do artista. O primeiro plano mostra uma paleta e atrás uma pintura. Entre a vida e a morte, o que é que transcende a própria morte senão a obra e o lugar onde é realizada, o atelier?
a Faltam 278 dias (21 de Novembro) para os 150 anos do nascimento de Columbano Augusto Prostes Bordalo Pinheiro, ou simplesmente Columbano, e para o Museu Chiado - Museu Nacional de Arte Contemporânea, em Lisboa, é um momento especial.
Columbano, "o maior pintor do século XIX português", nas palavras do director actual, Pedro Lapa, foi director do Museu do Chiado de 1914 a 1927. Quando morreu, aliás, ficou no museu em câmara ardente, rodeado de alguns quadros.
O pintor deixou grande parte da sua colecção ao Museu do Chiado, cerca de 200 obras, entre pintura desenho e escultura. "Obrigou a família a doar tudo", conta o director.
Esta exposição retrospectiva, que hoje abre, tem 78 obras, 60 pinturas e 18 desenhos. "Setenta e cinco são obras da colecção do Chiado, que tem uma colecção ímpar", diz Pedro Lapa. As restantes são de outras instituições e de coleccionadores privados.
Algumas delas foram as estrelas dos leilões portugueses nos últimos anos. O Sarau, comprado em 2001 por 350 mil euros, foi emprestado pelo empresário João Pereira Coutinho. Já o Estudo para o Concerto de Amadores, uma pequena obra de 37,5x46, chegou aos 160 mil euros em 2005. Columbano é dos pintores portugueses que mais recordes tem batido em leilões nacionais.
A segunda parte desta exposição, de 1900 a 1929, vai voltar ao Chiado só em 2010, porque o museu é demasiado pequeno para se poder olhar para a obra de Columbano de uma ponta à outra. É o momento para comemorar o centenário da República e Columbano foi o autor da bandeira nacional.
Columbano Bordalo Pinheiro é um homem complexo, com um projecto de pintura, como diz Pedro Lapa, único no século XIX português. Quis ser moderno, mas não apenas um naturalista convencional, como Silva Porto e Marques de Oliveira. O escritor Ramalho Ortigão, um amigo e defensor, chegou a escrever que algumas pinturas de Columbano eram "um desleixo de acabamento".
Num país onde pouco se reflecte a pintar, é possível encontrar na obra de Columbano "um meta-discurso sobre o a condição do trabalho do artista", diz Pedro Lapa. E dá o exemplo de um triângulo de pinturas, onde Columbano faz uma reflexão sobre a própria pintura, o papel do modelo, do artista e da recepção.
Na pintura O Meu Atelier, a preferida do director do Chiado, que é um auto-retrato do artista pintado no seu próprio atelier, há uma reflexão sobre a efemeridade da vida e a possibilidade do artista se transcender a partir da arte que realiza. Estão lá as tintas na paleta do pintor e um quadro, por detrás, já acabado. Esse quadro é o Retrato de Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro, o seu sobrinho, filho do irmão Rafael.
Nesta segunda pintura, que existe e foi feita em 1884, Columbano leva ao extremo a autonomia da mancha cromática sem contornos desenhados, confundindo chão e paredes, que são agora um só plano. Há um modelo que posa, o sobrinho, e a pintura realizada "é extremamente radical", mostrando que, em 1884, "toda a lição de Manet já está mais do que organizada e assimilada".
Manet estava lá
Há ainda uma terceira pintura neste triângulo, O Retrato de D. José Pessanha, um historiador da arte erudito, "que é o signo da crítica, da recepção". Neste quadro, também aparece o pintor, num espelho pendurado na parede, a fazer a própria pintura. "Todo o acto de realização da pintura é um acto que vai ser lido por alguém. A obra de arte ultrapassa os seus limites e é sempre um enquadramento específico de qualquer coisa que revela sempre muito mais do que aquilo que lá está."
Pedro Lapa não tem a mínima dúvida que Columbano olhou para a obra de Edouard Manet. "Ele viu-a, teve dúvidas e houve aspectos que o entusiasmaram. Creio mesmo que, sobretudo nestes anos a seguir a Paris, ele pensa bastante nas obras do Manet e estes trabalhos como o Retrato de Manuel Gustava Bordalo Pinheiro, entre outros, são tributários da lição do Manet. O pintor já tinha morrido também nessa altura, sido homenageado no Salon, depois de ter provocado grande escândalo, nomeadamente com a Olímpia."
Um auto-didacta
Mas Columbano só foi para Paris em 1881, já tinha começado a expor. Filho de um pintor amador e crítico, frequentou a Academia de Belas-Artes, mas foi um aluno pouco assíduo e a sua aprendizagem fez-se essencialmente em casa com o pai.
Foi em 1880 que mostrou uma série de pinturas, da Encantadora Prima, ao Convite à Valsa, passando por O Sarau, assumindo-se como uma espécie de cronista da vida moderna, como diz Lapa, de onde não está ausente um olhar irónico. "Como Columbano não tinha ainda saído de Portugal, tudo o que conhecia era através de reproduções a preto e branco e muito más", explica o director.
Em Lisboa, visitou também a galeria da colecção Daupias - vendida por volta de 1900 -, que tinha uns Corot, Courbet, Duabigny, Dupré. "Tacteou por aí e intuiu algo de moderno. E faz essas pinturas magistrais em 1880, pela liberdade com que a mancha de contornos indefinidos organiza a pintura", diz Lapa, transformando toda a pintura portuguesa pela sua forma mais radical. São as suas pinturas mais coloridas, com azuis e verdes. Depois, diz Lapa, "a paleta restringe-se, até se fechar completamente numa paleta de ocres".
Um ano depois, foi para Paris com uma bolsa do rei, onde visitou mais museus do que ateliers de artistas. Tem saudades e queixa-se, em cartas, do frio, da indiferença da multidão pelo indivíduo. Pedro Lapa considera que a estadia "foi um encontro falhado com a modernidade, no artista que mais possibilidades tinha de entender as vanguardas da época".
No seu trabalho feito em Paris, a modernidade está lá, mas é mais pelo que Columbano já tinha conquistado (antes de chegar à cidade) do que pelo contacto com as vanguardas. O pintor mistura a arte moderna com a herança da história da arte, que vê nos museus de Paris. O Concerto de Amadores é o resultado.
De regresso a Lisboa, Columbano volta a radicalizar o seu discurso pictórico. Os fundos são mais claros, torna-se mais sintético, ou seja, raspa da pintura aspectos literários e a sugestão de tridimensionalidade. Os anos de 1884 e 85, quando faz o retrato do sobrinho, "é o seu momento mais moderno".
Olhar fotográfico
Foi a lição de Manet o mais moderno a que Columbano aspirou? "É, pelo menos, o que mais transparece na sua obra e seguramente do mais moderno." Mas há pequenos aspectos, como o tratamento da postura dos modelos, que é produto do olhar para a fotografia e não da pose herdada da pintura clássica. "A tese mais grata da exposição é mostrar que Columbano trabalhou em vectores profundos da modernidade: uma assimilação de alguns aspectos da pintura de Manet e uma sensibilidade às tecnologias da percepção, concretamente a certos aspectos da fotografia."
Em 1900, Columbano tinha 43 anos. O século XX, diz Pedro Lapa, já não será o seu. "A obra do Columbano posterior é um prolongamento e uma revisitação de alguns aspectos enunciados no século XIX. Apesar de ser o maior pintor do século XIX português, é uma figura que está a mais, às vezes, no século XX." Querer que ele seja moderno no século XX, é pedir quase o impossível. "O que Columbano fez foi inventar a modernidade para a pintura portuguesa, mas Columbano aparece quase do nada."
De facto, Columbano abandona em 1886 "a radicalidade moderna". A exposição na Livraria Gomes, em Lisboa, em 1894, é recebida pela crítica de uma forma apoteótica: Columbano tinha-se tranformado "no retratista que todos desejam", o "artista oficioso", "o mestre moderno que domina a tradição".
Columbano Bordalo Pinheiro, 1874-1900
LISBOA Museu do Chiado, Rua Serpa Pinto, 4. De 3ª a dom., das 10h às 18h. Até 27 de Maio.
O Grupo do Leão, 1885
Óleo sobre tela, 200x380cm
É o retrato de grupo de toda uma geração, que tentou trazer para a pintura portuguesa um sentido moderno. Pintado para a cervejaria Leão de Ouro, em Lisboa, Columbano representa os elementos do Grupo do Leão em torno de uma mesa, de um lugar de tertúlia. Estão Silva Porto, António Ramalho, Rafael Bordalo Pinheiro, mas também figuras secundárias. A pintura retoma, de novo, a tradição clássica da pintura, como o sistema compositivo da Última Ceia, em que Silva Porto está ao centro, como chefe de escola, no lugar de Cristo. Depois, há memória dos grupos da pintura holandesa do século XVII, de Franz Hals, que pagavam retratos e gostavam de ser retratados. Mais próximo de Columbano, os grupos que Fantin-Latour pintava, com o Rimbaud e Verlaine. As figuras são recortadas em silhueta. Os fundos são neutros e abstractos. O enquadramento é uma estrutura arquitectónica forte, para as figuras não se diluirem numa espécie de estampa japonesa. Há ainda aspectos incoerentes relacionados com a pose dos modelos: há figuras a posar de forma tradicional e outras parecem tiradas de um instantâneo. A sua pose vem da fotografia.
Óleo sobre tela, 220x300cm
É uma das suas obras-primas, feita em 1882 para o Salon de Paris, o que justifica alguns aspectos paradoxais da pintura. O tema tem uma dimensão extremamente intimista - um conjunto de pessoas num serão a cantar; um toca piano, os outros cantam -, mas é representado com uma inesperada escala ampliada (220x300cm). Esta pintura é uma fusão entre toda uma memória clássica, lida numa óptica moderna. É uma pintura de sombras e penumbras, com um tratamento da luz extremamente complexo, que Columbano seguramente estudou no Louvre. A vela tapada que ilumina Artur Loureiro, ao piano, faz lembrar o jogo de velas de Georges de La Tour e o rosto de Josefa Greno, com a luz que lhe é dada debaixo, remete para as virgens de Morales do século XVII. No centro da composição está a mão do cantor que segura as luvas. Nas luvas, como nas pautas, já não há quase claro-escuro, são antes elementos completamente matéricos. Superfícies espessas, definindo apenas planos de cor, dentro dos parâmetros da lição do Manet.
Retrato de Antero
de Quental, 1889
Óleo sobre tela, 73x53,5cm
Depois das experimentações mais modernas, esta obra inicia uma nova fase. Em 1889, a arte simbolista domina e Columbano foi verdadeiramente sensível a esta estética. É feita depois de uma viagem a Madrid, ao Museu do Prado, onde viu Velázquez e toda a tradição tenebrista de Zurbarán. A seguir visitou Paris. No retrato, o fundo volta a ser escuro e a figura sofre uma espécie de desmaterialização. A pintura torna-se transparente, a tinta mais fluida. A estrutura da face é quase um crânio e, para algumas pessoas, antecipa em dois anos o suicídio de Antero. Um sentido que lhe é dado pela ausência de carnação e a presença da estrutura óssea. É um retrato que não se presta à descrição dos aspectos físicos, mas de uma figura evanescente, a exaltação de uma ideia.
Concerto de Amadores, 1882