Roberto Rossellini O génio do cinema pobre
A Cinemateca Portuguesa abre hoje à noite, com a exibição de Roma Cidade Aberta, uma retrospectiva dedicada a Roberto Rossellini.
Oportunidade única para ver a obra toda do grande inventor de formas, o homem que mudou o olhar moderno sobre a política, a religiosidade,
a História, o cinema. E para recordar a sua passagem pela Gulbenkian, em Lisboa, em Novembro de 1973. Por Mário Jorge Torres
Depois da retrospectiva de 1973/74, na Gulbenkian, então com a presença do realizador (ver caixa), cabe agora à Cinemateca Portuguesa organizar uma muito necessária integral, até porque irá incluir os filmes menos vistos do realizador, que, nessa altura, talvez por razões conjunturais, não foram mostrados. Com efeito, a primeira fase da sua obra, anterior a Roma, Cidade Aberta (1945), cumpre-se com uma série de curiosos veículos de propaganda, integrados no contexto da produção de série do regime fascista mussoliniano: Luciano Serra Pilota (co-dirigido com Alessandrini, 1938), La Nave Bianca (1941), Un Pilota Ritorna (1942) e L"Uomo della Croce (1943) são pouco vistos, mas tornam-se importantes para avaliar o grau de contradição na formação daquele que vai constituir-se como o esteio moral do neo-realismo.
De qualquer modo,"Roma, Cidade Aberta assume-se como o corte definitivo, como uma espécie de manifesto da estética do pós-guerra: um cinema pobre, rodado em cenários naturais, iluminados com os parcos recursos que restavam, com som directo e uma mistura revolucionária de actores (o fabuloso Aldo Fabrizi, no padre, cujo fuzilamento final ficará como uma das imagens maiores do cinema, e o carisma inigualável da ainda jovem Anna Magnani) e não-actores, visando apreender o real sem quaisquer embelezamentos, nem glamorosas caricaturas de personagens.
Apelo emocional à resistência política e belíssimo fresco de uma Itália devastada pelo fascismo e pela ocupação alemã, que se seguira à queda de Mussolini, o filme permanece inalterado, com a mesma força da estreia, olhar novo e revigorante, a virar o cinema de pernas para o ar. Ao seu lado, numa espécie de tríptico, avultam ainda Paisà (1946), a dar forma ao tão influente filme de sketches, crónica de uma resistência medida e fragmentação desmesurada do olhar fílmico, bem como Alemanha, Ano Zero (1947), contraponto de Roma, do ponto de vista germânico, encenando, com semelhante economia de sentidos e de meios, a devastação moral de um mundo em ruínas.
Num sentido restrito, termina então a intervenção "neo-realista" do cineasta: O Amor (1948), concebido para a Magnani, incluindo uma leitura excessiva de A Voz Humana de Cocteau, ou As Florzinhas de São Francisco de Assis (1950) abriam já para uma hipótese de melodrama metafísico ou para a inscrição no seu universo de uma ascética depuração do olhar, a prescrutar o mais profundo da dimensão humana.
Encontro amoroso e afectivo com Ingrid BergmanEntretanto, dera-se o encontro amoroso e artístico com a diva de Hollywood Ingrid Bergman, e Stromboli (1950) demonstrava um raro sentido documental, cruzado com a exploração da corrente da consciência em moderna exposição de um erotismo essencial e metafísico: a dor da experiência traumática da guerra dava lugar a uma outra urgência de analisar a inadequação do desespero de viver um quotidiano, maculado pela perda de valores e pela necessidade de lhe sobreviver. Europa 51 (1953) levava ao expoente máximo, tanto a relação com Ingrid Bergman como o desejo de aprofundar a clareza do olhar, transmutada numa dor intrínseca à desesperança de cumprir um papel na tragédia humana. Na deambulação sonâmbula da actriz pelas ruas, na sua quieta anulação do olhar vazio, jogava-se a modernidade de um novo paradigma da intervenção do estético no ético e vice-versa.
No entanto, se Roma rompeu com as convenções de um cinema artificial de estúdio, Viagem a Itália (1954) abria, em pleno, para o cinema moderno, encenando uma crise conjugal, no confronto com a paisagem dramática do Sul (inesquecível a visita às ruínas de Pompeia), e questionando a incomunicabilidade e a interioridade da economia dos sentimentos com mão certeira e olhar arguto. Conto moral sobre a impotência do amor e sobre a sua ressurreição quase metafísica, o filme precede todas as Nouvelles Vagues, filmando os silêncios e as peripatéticas deambulações, a hesitação e as pequenas traições, sem quaisquer cedências, com um rigor que dói de tanto fazer sentido. A reconciliação final, no tumulto de uma procissão, fechava, de certo modo, um ciclo, mas afirmava a força de um cinema total, com a genialidade de simples gestos e de insignificâncias tornadas essências. O pathos deste encontro prolongava-se por filmes menores, como O Medo (1954), ou no episódio de Nós, as Mulheres (1953), cruzando o autobiográfico com a encenação de um simulacro do real: a Bergman "contracenava" com as galinhas e cuidava das rosas, num quotidiano fílmico, instituído em fingimento.
O "luto" pela Bergman fá-lo Rossellini, filmando Índia (1958) e regressando a lugares-comuns do seu próprio cinema: O General della Rovere (1959), com De Sica, revisitava em perda Roma; Viva a Itália (1960) refazia uma visão histórica, socorrendo-se da metáfora da unificação italiana; o belíssimo Vanina Vanini (1961), talvez a mais profunda presença de Stendhal no cinema, era, apesar de tudo, a marca de um impasse.
E, quando parecia que o génio se "esgotara", Rossellini "inventa" o telefilme didáctico-histórico. Mais uma vez, da estreiteza de recursos económicos nascia um novo fôlego: Tomada do Poder por Luís XIV (1967) encenava a história com rigor; Sócrates (1970) ou Pascal (1971) revelavam a sua imensa genialidade, dentro dos limites de uma pedagogia questionadora; o cristianíssimo O Messias (1975) dialogava com o ateísmo de Pasolini. O mestre do cinema pobre revelava-se, até ao fim, como o grande inventor de formas, o homem que mudara o olhar moderno sobre a política, a religiosidade, a História, o cinema.