Riszard Kapuscinski (1932-2007) Morreu o repórter completo
Fugindo sempre da rotina, o jornalista polaco precisava de escrever livros depois de escrever as notícias.
Para poder relatar "o clima, a atmosfera das ruas, os sentimentos das pessoas, as fofocas, os rumores; os cheiros;
os milhares e milhares de elementos que fazem parte dos acontecimentos". Por Joana Amado
Sempre que possível, mesmo quando os obstáculos pareciam intransponíveis e os perigos mortais, o repórter estava lá. Em África, sobretudo, mas também na ex-União Soviética, na América Latina, no Médio Oriente. Golpes de Estado, revoluções, guerras, acontecimentos fracturantes que merecessem o seu olhar atento, Riszard Kapuscinski tentou não falhar nenhum ao longo de quase quatro décadas de carreira. O jornalista/escritor polaco morreu na terça-feira à noite aos 74 anos, vítima de cancro, sem que muitos dos amigos mais próximos se apercebessem de que estavam assim tão perto de o perder.Joaquín Estefanía, antigo director do El País, recordou ontem a resposta que o seu amigo "Ricardo", unanimemente considerado como um dos mais brilhantes repórteres contemporâneos, deu a um jovem aluno de Jornalismo durante uma conferência em Madrid. A pergunta: "Qual é o principal risco que um jornalista enfrenta no exercício da sua profissão." A resposta, resumida: "O principal perigo é a rotina. O jornalismo é um acto de criação."
Depois das primeiras reportagens para um jornal polaco na Índia, Paquistão, Afeganistão e China, Kapuscinski lançou definitivamente a sua carreira de repórter no final da década de 1950 como único correspondente em África da agência de notícias polaca: um jornalista para todo um continente à beira da explosão. Os telexes chegavam a Varsóvia de Ougadougou ou de Zanzibar, com a informação necessária e as regras da agência cumpridas. Era à noite ou "depois das guerras" que Kapuscinski se completava, dedicando-se àquilo que gostava de chamar "reportagem pessoal" ou "literatura a pé", recordou no New York Times Michael T. Kaufman, que ontem assinava a notícia da morte do jornalista polaco.
"Não é que a história não estivesse a ser contada" nas notícias da agência, explicou Kapuscinski numa entrevista ao mesmo jornal. "É o que rodeia a história. O clima, a atmosfera das ruas, os sentimentos das pessoas, as fofocas, os rumores; os cheiros; os milhares e milhares de elementos que fazem parte dos acontecimentos que as pessoas depois lêem numa pequena notícia no jornal da manhã."
E tudo o que rodeia a história está lá, nos seus livros, em narrativas dramáticas e alegóricas. Em O Império (1978), sobre a queda de Hailé Selassié, o imperador da Etiópia, escreveu sobre "a inevitável tendência de um déspota, seja ele um rei, um guarda de prisão ou um ditador, para preferir a lealdade à capacidade nos seus subordinados, e para procurar a segurança na estagnação", na definição de John Updike recordada por Kaufman.
Mas há mais. O seu livro sobre Angola em 1975, Mais Um Dia de Vida; The Shah of Shahs, que narra a saída de Reza Pahlevi do Irão; The Soccer War, sobre o conflito entre as Honduras e El Salvador em 1969, ou O Império, uma narrativa de viagens pela Rússia e países vizinhos depois do colapso da União Soviética. Os títulos em português estão editados pela Campo das Letras, juntamente com Ébano - Febre Africana que, segundo o próprio autor, "não é um livro sobre a África, mas sim sobre algumas pessoas de lá, sobre os encontros que tive com elas, o tempo que passámos juntos".
Kapuscinski nasceu a 4 de Março de 1932 em Pinsk, uma "cidade poliglota de judeus, polacos, russos, bielorrussos, ucranianos e arménios", que faz hoje parte da Bielorrússia. A pobreza e a total ausência de identidade nacional da sua terra natal, segundo disse à Granta, fez com que redescobrisse sempre Pinsk "em África, na Ásia, na América Latina".