Uma arte de ver
Se os últimos livros de Fiama obtiveram o merecido aplauso da crítica, vale a pena olhar para trás e ver como são apenas o culminar de um dos mais coerentes e consistentes trajectos da poesia portuguesa contemporânea
Imagine-se que, ao olhar-se para uma casa em ruínas, se vê a casa, literalmente, com o olhar detalhado e neutro de uma objectiva fotográfica, mas que ao mesmo tempo se vê a casa como ela foi em várias épocas, e as pessoas que nela viveram, e as heras que a recobriram, e se vê, no espírito, muitas outras casas que conhecemos, e as casas de que falaram, ao longo dos séculos, os muitos poetas que falaram de casas, quer de casas concretas, quer da Casa abstracta, e que nos vemos a nós próprios vendo a casa cujas ruínas estão à nossa frente, e nos vemos escrevendo um poema que tome tudo isto em consideração. Este parágrafo teria de ser muito mais longo - na verdade, infinitamente longo - para incluir tudo o que, potencialmente, concorre para o que, na poesia de Fiama Hasse Pais Brandão, é o acto de ver. Ou de escrever. É claro que, ressalvado o hipotético olhar de Deus, ninguém "vê" assim. O que Fiama procurou foi uma linguagem que desse testemunho desse esforço, que pudesse "representar" a coincidência absoluta de um olhar idealmente objectivo - capaz de não alienar a irrepetível singularidade do que está a ver no instante em que escreve - e de um olhar que, mais do que apenas subjectivo, no sentido corriqueiro de "pessoal", fosse também uma espécie de mediador de todas as subjectividades que alimentaram a sua, incluindo essa sucessão de subjectividades a que chamamos História da Literatura. Esta aspiração está no centro de um percurso a que, mesmo com todas as cautelas, só podemos chamar iniciático.
É verdade que há poucas obras onde esteja tão presente a tradição literária - um dos seus livros chama-se mesmo Homenagemàliteratura (1976) -, mas as imposições do percurso que escolheu levam-na para lá (ou mantêm-na para cá) do que convencionalmente entendemos por literatura. É por isso que olhar para os seus poemas como meras tentativas de atingir um determinado resultado estético é inevitavelmente redutor. E isso tanto vale para o árduo experimentalismo dos seus primeiros livros como para a beleza deslumbrante de alguns dos seus textos mais recentes.
No entanto, não devemos confundir o seu trajecto com uma experiência mística. Não se sente aqui, como nos grandes poetas místicos, um desejo de dissolução do eu. Um dos esforços mais permanentes de Fiama é, pelo contrário, o de conseguir expressar com exactidão o que o seu olhar sobre o mundo tem de irredutivelmente único, algo que não é contraditório com a sua aguda consciência de tudo o que conflui nessa visão, ou a condiciona, a começar pela língua em que escreve. Num poema de Cenas Vivas (2000), diz: "o idioma é fechado e insondável em cada criatura."
Em certo sentido, poder-se-ia falar de gnose, se a palavra não estivesse demasiado associada às heterodoxias cristãs, cuja repulsa pela materialidade está nos antípodas do profundo amor que a obra de Fiama testemunha não apenas por tudo o que vive, mas, mais latamente, por tudo o que existe.
A "fala perfeita"Muitos outros poetas foram diversamente marcados por uma dimensão gnóstica,
incluindo Novalis, cujos Hinos à Noite Fiama traduziu, ou, para não ir mais longe, Fernando Pessoa. O que caracteriza Fiama, para lá da fidelidade exemplar a um projecto que já se deixava adivinhar no título do seu primeiro livro, Em Cada Pedra Um Voo Imóvel, publicado aos 19 anos, é o facto de a sua obra ser não apenas o resultado da sua travessia interior, mas o relato possível dessa travessia, que exigiu a invenção duma língua, muito para lá do que vulgarmente se entende por adquirir um estilo próprio.
Num ensaio publicado no volume Em Parte Incerta, Rosa Maria Martelo sublinha o longo percurso que Fiama teve de percorrer para chegar à apaziguada transparência dos seus últimos poemas, e em particular aos que reuniu no seu último livro: "(...) o olhar raso procurado em Cenas Vivas tem por detrás uma elaboradíssima experiência de leitura e de escrita (...)", escreve a ensaísta, acrescentando que "(...) esse olhar que voluntariamente se sustém perante a evidência do real, apenas se tornou possível por ter atrás de si quarenta anos de uma biografia de poeta ciente da imensa herança proporcionada pela tradição artística, que Fiama ama com o mesmo deslumbramento com que vê voar os pirilampos (...)".
Uma intuição central deste texto é a de encarar o percurso poético de Fiama, desde a sua deliberada tentativa inicial de "desfamiliarizar" a linguagem, como uma sucessão de passos necessários para chegar, no final, "à resolução de todas as tensões de que partira". Ou seja, à criação, ou à conquista, daquilo a que Rosa Martelo chama a "fala perfeita", citando um poema de Cenas Vivas: "Tu, realidade, és nome de ti/ e do que os poetas fundam,/ depois de terem a fala perfeita". Ou seja, uma língua simultaneamente própria e apropriada ao que Fiama acreditou ser a missão da poesia.
Apesar de títulos tão marcantes como Área Branca (1978), a primeira fase da obra poética de Fiama não seduzirá tão facilmente os leitores como os seus livros mais recentes, que, não por acaso, mereceram o elogio unânime da crítica. Mas a sua obra, reeditada num só volume pela Assírio & Alvim, merece ser vista como um todo, porque só assim teremos a noção da extraordinária coerência e consistência desta aventura de palavras.