Wozzeck Uma ópera "à David Lynch"
O Centro Cultural de Belém estreia hoje, em Lisboa, uma das mais inquietantes óperas do século XX: Wozzeck, de Alban Berg.
O espectáculo integra a programação do Teatro de São Carlos. O PÚBLICO falou com o encenador, no intervalo de um ensaio, e Stéphane Braunschweig prometeu romper com as convenções da ópera. Por Pedro Boléo
"Alguém tem de pôr isto em música", afirmou Alban Berg, fascinado, depois de assistir em Viena à peça de Georg Büchner Woyzeck, que serviu de base para o libreto de Wozzeck. Büchner morreu em 1837 com 23 anos e deixou apenas fragmentos mais tarde publicados numa versão do escritor e editor Karl Emil Franzos. Um erro do editor transformou Woyzeck em Wozzeck. Apenas uma letra trocada, mas entre a peça fragmentária de Büchner e a ópera de Berg há grandes diferenças.
Stéphane Braunschweig, encenador da ópera que se estreia esta noite no Centro Cultural de Belém (CCB), afirma que Wozzeck "é uma ópera baseada numa peça de teatro que já de si é muito forte. É a história de alguém que não tem muitas palavras para falar, que não tem muita cultura e se encontra preso numa engrenagem".
A história parte de uma simples notícia de jornal que dava conta de um pobre soldado e barbeiro que assassina a sua mulher. Büchner, que estudou Medicina, faz um relatório "clínico" do soldado Woyzeck. A ópera mantém da peça original pelo menos um aspecto fundamental: as visões e os tormentos do personagem principal, à beira da loucura.
A ópera estreou-se em Berlim em 1925, pela mão do maestro Erich Kleiber, com grande sucesso. Ao mesmo tempo foi alvo de grandes oposições estéticas e políticas. Berg foi atacado por todos os lados. Alguns compositores ultraconservadores apelidaram a sua música de "impotente". No meio dos conflitos políticos da época, foi acusado de ser antialemão pelos nacionalistas alemães e de ser demasiado alemão pelos nacionalistas checos. A obra viu-se envolvida em polémica até ser, em 1933, definitivamente proibida pelos nazis e catalogada como música degenerada e expressão do "bolchevismo cultural".
A música enigmática, atonal e violenta de Berg
O que era para muitos inaceitável nos anos 1920, mais do que a denúncia da miséria e da hipocrisia social ou a violência do texto, era a música enigmática, atonal e violenta de Berg. Segundo Stéphane Braunschweig, essa música é "verdadeiramente extraordinária". Por isso, o encenador optou por não fazer uma encenação "realista", nem cair na ilustração: "Não é preciso mostrar tudo, corremos o risco de ser ilustrativos ou redundantes, e aí a música torna-se também ilustrativa e isso não é bom. A música é expressiva por si mesma, ela é uma paisagem interior. É ela o motor."
Para Braunschweig, actualmente director do Teatro Nacional de Estrasburgo, fazer esta encenação é "tornar possível que os espectadores ouçam melhor a música, entrem na profundidade e na espessura da música." Daí que tenha decidido fazer uma encenação sóbria, com poucos meios, "mas não neutra", faz questão de notar. E lembra: "Ele escreveu a peça na sequência da Primeira Guerra Mundial, é uma peça muito marcada pela experiência da guerra, traumatizada por isso. A ópera é de 1921, temos de ter em conta isso." Mas a actualidade desta ópera é evidente para Braunschweig: "É uma peça que faz ressoar o mundo. Há poucas palavras, pouco material. Todas as palavras se podem carregar das experiências actuais. Como uma caixa de ressonância."
Salientando a radical modernidade de Wozzeck, o encenador acredita que ela "pode levar à ópera pessoas que estão um pouco reticentes em relação ao mundo convencional da ópera". E faz mesmo um paralelo entre a sua encenação e os universos de David Lynch: "Com esta música temos a impressão de estar num outro lugar. Por isso construí um espectáculo muito "mental", onde entramos num mundo interior. Pensei mais na forma dos filmes de David Lynch, por exemplo, em como são construídos..."
Quanto ao luxuoso elenco de Wozzeck (ver caixa), o encenador francês atribui-lhe uma difícil missão: [Os cantores] não têm de mostrar o que está na música, mas trazer a música dentro de si."