Anabela Duarte Só a voz, tudo com a voz
Amanhã e quarta-feira, no átrio do Teatro Nacional, em Lisboa, Anabela Duarte canta Boris Vian e Kurt Weill. Os Mler Ife Dada são passado distante, Machine Lyrique, o novo álbum em estreia, é parte de um presente multifacetado
Vemo-la, elegante no fato preto colado ao piano. Vemo-la afastar-se quando soam as primeiras notas do pianista, e cantar, expressiva, um swing bem humorado. A canção, J"suis snob, é de Boris Vian, a voz é de Anabela Duarte, o piano, o de Ian Mikirtoumov, e o espaço, o átrio do Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa. Anabela Duarte, que a maioria conhecerá dos Mler Ife Dada (Zuvi Zeva Novi, lembram-se?), apresentava à imprensa, na passada quinta-feira, Machine Lyrique, disco onde interpreta canções de Boris Vian e Kurt Weill, e dir-se-á que não a reconhecíamos. Ah, mas Anabela sempre foi muitas coisas e a coerência é o que quiser fazer dela. Amanhã e quarta-feira, pelas 19h00, cantará Weill e Vian no D. Maria II (entrada gratuita). Depois, editará dois discos de canto lírico e outro de electrónica caseira. Conta-nos ela: "Dizem-me que não posso andar a cantar tudo ao mesmo tempo, que tenho que arranjar um perfil. Mas o perfil pode estar em tudo isso".
Machine Lyrique nasce de um encontro e de um reencontro. Encontro com a música de Boris Vian, que conhecia como o escritor autor de A Espuma dos Dias; reencontro com Kurt Weill, que já tinha cantado no passado - "Quem estuda canto passa sempre por ele, quem vem da pop há-de ir lá ter". Anabela Duarte, que se passeia pelos dois universos, aprofundou o que conhecia do autor da Ópera dos Três Vinténs, pediu a um amigo de Paris que lhe enviasse partituras de Vian e, mais tarde, "descobriu" no pianista moscovita Ian Mikirtoumov o intérprete indicado para a acompanhar no projecto.
Dir-nos-á então que, apesar das diferenças entre o compositor alemão e o francês que foi escritor, músico, engenheiro e tantas coisas mais, une-os uma mesma "imaginação, uma faceta algo surreal, um tocar a vida das coisas". Mais: "São imprescindíveis. Tocam na base do nosso entendimento com os outros. Eles bateram nessa tecla e é bom que o continuemos a fazer. Essa é a verdadeira tecla que nos interessa pôr a funcionar".
Ainda este ano, Anabela Duarte tem prevista a edição de dois álbuns de canto lírico (um com repertório de Bellini, Donizetti e Rossini, outro dedicado a Mozart) e outro, Dust Tracks, com material que foi gravando no computador caseiro desde 2001. Não é facilmente categorizável o percurso da cantora.
Reparámos nela pela primeira vez na segunda metade dos anos 80, nos Mler Ife Dada, banda dedicada a revirar as entranhas da pop com um sorriso subversivo e uma vontade de conjugar modernidade e português na mesma música. Foi por ali, mais propriamente em 1990, quando abandonou o grupo, que a maioria deixou de reparar nela. Não que ela tenha parado. Editou três álbuns a solo - tinha-se estreado, ainda nos Mler Ife Dada, com o fado pouco canónico de Lisbunah -, cantou e declamou poesia em vários espectáculos, esteve em palco em peças teatrais, partiu para Florença para continuar os estudos de canto lírico e gravou música electrónica em Lisboa. Fez muito e foi muitas coisas - Anabela Duarte nunca se contenta em ser uma apenas.
No hall do D. Maria II, vestido preto elegante e sapatos de salto fino, Anabela Duarte encosta-se ao piano e liberta-se num teatro que não preciso de cenário: está tudo na voz e no corpo movendo-se discreta mas expressivamente na pele das personagens múltiplas, irreverentes, contraditórias e humanistas das canções de Weill e Vian. "Tudo aqui tem a voz em primeiro plano e, neste momento, é isso que me interessa trabalhar. Da voz aparece tudo o resto". Compreendêmo-la melhor, ela que veio da performance e dos artifícios pop dos Mler Ife Dada, quando nos explica a opção, nas apresentações dos próximos dois dias, por um palco despojado de adereços: "A Edith Piaf chegava sozinha e aquela figura pequenina enchia a sala. Crescia, crescia, crescia. Tinha essa capacidade de agarrar as pessoas, de nos arrancar o coração com um alicate". É isso que Anabela Duarte quer também agora. Só a voz, tudo com a voz. Neste momento, é esse o seu palco, são dela as canções de Kurt Weill e Boris Vian.
Anabela Duarte canta
Kurt Weil e Boris Vian
LISBOA Teatro Nacional D. Maria II (átrio). Tel. 213250835. Dias 9 e 10 de Janeiro, às 19h00. Entrada livre.