Kofi Annan A DESPEDIDA DO MAIOR DIPLOMATA DO MUNDO
Em dez anos à frente da Organização das Nações Unidas, o ganês que sucedeu ao egípcio Boutros Boutros-Ghali revolucionou o papel do secretário-geral. Mas os seus mandatos não estão isentos de controvérsias e insucessos - o maior dos quais foi o Iraque. Por Rita Siza, Washington
Nunca nenhum secretário-geral da ONU precisou de pronunciar tanto a palavra "globalização" quanto Kofi Annan - nos últimos dez anos em que esteve à frente da mais importante organização multilateral do mundo, o ganês foi o rosto do "movimento" que caracteriza o início do milénio e cujos efeitos se sentem a nível económico, político e social."O maior diplomata do mundo", como Annan foi classificado, deixa amanhã o seu lugar nas Nações Unidas, e um mundo radicalmente diferente daquele que encontrou quando tomou posse. Em 1997, logo no início do seu primeiro mandato, teve de atender à maior crise de refugiados na Europa do pós-guerra (e na história da ONU), na sequência do desmembramento da antiga Jugoslávia.
A recomposição política dos Balcãs ocupou a atenção de Annan nos primeiros tempos no cargo, mas ao longo dos últimos dez anos, muitas outras crises se seguiram: em África, a Somália quase implodiu; a Etiópia e o Sudão entraram em guerra civil; e a fome, a violência e a guerra tornaram o Darfur possivelmente na região mais falhada do mundo.
O processo de paz israelo-palestiniano, com inúmeros avanços, retrocessos e solavancos, não deixou de estar na agenda. E a 11 de Setembro de 2001, também a ONU mudou após os atentados em Nova Iorque e Washington: como nenhum outro secretário-geral antes dele, Annan não mais deixou de pronunciar a palavra "terrorismo".
A resposta a essa ameaça global tem dividido o secretariado-geral e o Conselho de Segurança, e causado "mossa" no equilíbrio entre os vários Estados-membros, como ficou demonstrado no processo que levou à invasão do Iraque pelos EUA sem o aval da organização (o processo que Annan mais lamenta no balanço dos seus dois mandatos).
Além das crises políticas, na última década abundaram catástrofes e desastres naturais - o maior de todos o tsunami asiático em 2004 - que exigiram da ONU respostas variadas, em apoio de emergência a desalojados ou em termos de reconstrução.
Os admiradores de Annan destacam no seu mandato uma extraordinária transformação no papel institucional e na importância do secretário-geral. "Um porta-voz do mundo, quase uma espécie de papa secular", nota Edward Luck, professor da Universidade de Columbia e especialista na história das Nações Unidas.
Árbitro, globe-trotter, decisor - mais do que um mero representante ou um executivo, Kofi Annan criou um novo espaço de intervenção para o secretário-geral e abriu novas frentes de actuação antes fora do âmbito da instituição. "Não tenho a mínima dúvida que Kofi Annan foi o mais activo e influente secretário-geral da ONU desde Dag Hammarskjold", sublinha Stanley Meisler, autor da biografia Kofi Annan: A Man of Peace in a World of War.
Sob os seus auspícios, a ONU envolveu-se, por exemplo, no maior número de sempre de operações de paz da sua história. Iniciou o difícil debate da sua reforma institucional (processo que constará no seu legado mais como fracasso do que concretização). "Com Kofi Annan, a ONU começou o seu processo de adaptação a um mundo muito diferente daquele que existia à época da sua fundação, que naturalmente obrigou a repensar a sua missão", comenta Lee Feinstein, do Council on Foreign Relations. "Na última década, a ONU deixou de ser o local onde os países vão fundamentalmente para discutir e passou a ser um local onde acontecem coisas, onde se traçam estratégias, onde nascem iniciativas", acrescenta.
Importantes princípiosNo entanto, destaca Edward Luck, a herança mais significativa de Annan será mais teórica do que prática: ele trouxe para o debate político alguns dos temas que até agora permaneciam cuidadosamente ausentes do discurso oficial dos líderes da ONU: a obrigação dos Estados de promover a democracia e o direito à protecção das populações - do genocídio, da pobreza abjecta, da dispersão de doenças, da desigual distribuição da riqueza.
Annan conseguiu mesmo consagrar alguns importantes princípios que avançam o espírito fundador da Carta da ONU, o mais fundamental dos quais o reconhecimento da supremacia dos direitos individuais sobre os governos, que abre a possibilidade à intervenção da comunidade internacional para defender os cidadãos dos seus próprios Estados.
Fazer justiçaSem a pressão e o compromisso pessoal do secretário-geral, referiu a BBC, os 192 membros da instituição nunca teriam aceitado esta nova filosofia da "intervenção", que permite à ONU colocar-se acima dos direitos dos Estados soberanos sempre que esteja em causa a protecção de civis. "A "responsabilidade da protecção", como definida por Annan, é um ponto de viragem histórico, se a ONU tiver a capacidade de levar este princípio à prática", acrescenta Lee Feinstein.
A sua revolucionária liderança da ONU acabaria por ser reconhecida, em 2001, com um Prémio Nobel da Paz. Annan foi o primeiro secretário-geral a ascender das fileiras da ONU: ingressou em 1962 na Organização Mundial de Saúde, tendo posteriormente passado pela Comissão Económica para África em Addis-Abeba e pelo gabinete do Alto-Comissariado para os refugiados em Genebra até assumir o comando do departamento de operações de manutenção de paz, na sede em Nova Iorque.
Em 1997, Annan subiu ao cargo mais elevado da organização depois de os EUA terem chumbado um segundo mandato do então secretário-geral, o egípcio Boutros Boutros-Ghali. Nessa altura, o seu "passado" americano acabou por fazer a diferença - nascido no Gana, em 1938, Annan é produto da educação dos EUA (nos Macalester College do Minnesota e Massachusetts Institute of Technology).
Dez anos mais tarde, a amizade de Annan e dos EUA esfriou. Apesar de o antigo secretário de Estado Richard Holbrooke o definir como "o melhor secretário-geral da ONU de sempre", a actual Administração não se tem coibido de criticar o desempenho de Annan e de assinalar a sua ineficácia à frente da organização. Em várias intervenções, o Presidente Bush não se cansa de recordar que os americanos nunca desconfiaram tanto da ONU como agora - crítica motivada pelos resultados do inquérito ao escândalo do programa "Petróleo por Alimentos", que valeu à organização uma imagem de corrupção e de benefícios ilícitos dos seus mais altos dirigentes.
O nome de Kofi Annan chegou a estar directamente envolvido no escândalo, cujas ramificações atingiram uma empresa suíça onde trabalhava o seu filho Kojo, e que teria obtido contratos no âmbito daquele programa de forma irregular. Na sequência da investigação, o secretário-geral acabaria por ser ilibado de qualquer acusação. Mesmo assim, o escândalo salpicou o seu segundo mandato. "Espero que os historiadores, mais tarde, me façam justiça. O escândalo "Petróleo por Alimentos" não foi o único registo dos últimos cinco anos", declarou.