Morreu Gerald Ford, que quis sarar as feridas da América
Foi Presidente por acaso, graças à indignidade do seu amigo Nixon. A sua governação não deixou grandes
traços e não conseguiu ser reeleito. O seu mandato foi dominado pela preocupação de reconciliar os americanos, desmoralizados pelo escândalo de Watergate e pelo desastre do Vietname, restabelecendo o prestígio
das instituições. De resto, foi um congressista hábil e um homem banal. Por Jorge Almeida Fernandes
Gerald Ford, o 38.º Presidente americano (1974-1977), morreu na terça-feira ao fim da tarde (03h45 de ontem em Portugal), no seu rancho na Califórnia, aos 93 anos. Foi um Presidente acidental, tal como antes acidentalmente foi vice-presidente, o único da História americana que nunca foi eleito para o cargo pelo sufrágio popular. Coube-lhe a tarefa de devolver a confiança aos americanos após o escândalo de Watergate e a demissão de Richard Nixon, tal como restabelecer o orgulho nacional no fim da guerra do Vietname. Os americanos identificavam-se com a sua imagem de homem "simples, honesto e decente", mas não lhe perdoaram ter indultado Nixon.A notícia foi dada por sua mulher, Betty Ford, num curto comunicado: "A minha família junta-se a mim na partilha da difícil notícia de que Gerald Ford, nosso amado marido, pai, avô, bisavô faleceu aos 93 anos. A sua vida foi plena de amor por Deus, pela família e pelo país." Não foi indicada a causa da morte, mas Ford teve uma pneumonia em Janeiro e sofria de problemas cardíacos. O funeral realizar-se-á em Washington e em Grand Rapids (Michigan), que o elegeu representante durante 13 mandatos consecutivos.
"O pesadelo acabou"Ford era um típico congressista, eleito pela primeira vez em 1948 e que alcançou o seu sonho supremo ao tornar-se chefe da minoria republicana na Câmara dos Representantes. Foi internacionalista em política externa, conservador em política económica e social, moderadamente aberto na questão dos direitos cívicos.
A sua sorte muda inesperadamente em Novembro de 1973 quando Nixon o nomeia vice-presidente, após a demissão de Spiro Agnew por corrupção. Foi uma segunda escolha, pois o Presidente preferia o antigo governador do Texas John Connaly, mas este tinha a oposição do Congresso. Foi leal a Nixon, mas soube demarcar-se a tempo do escândalo de Watergate.
Mas o grande "acidente" é a demissão de Richard Nixon, a 8 de Agosto de 1974, para evitar ser julgado pelo Senado, depois de o Supremo Tribunal ter deliberado unanimemente contra ele e a comissão judicial da Câmara ter proposto a destituição (impeachment). Ford toma posse no dia seguinte, com uma frase que ficou na História: "Compatriotas americanos, o nosso longo pesadelo nacional acabou."
Impôs imediatamente um estilo oposto ao de Nixon, o fim na "presidência imperial", na expressão do historiador Arthur M. Schlesinger. Acabou com o secretismo e abriu a Casa Branca a congressistas e jornalistas. Pôs a ênfase na lei: "A nossa Constituição funciona, a nossa grande república é um governo de leis, não de homens." Depressa a sua taxa de popularidade subiu a 71 por cento.
"Esta eufórica lua de mel durou precisamente um mês", escreveu o Washington Post. A 8 de Setembro, concede um "perdão integral" a Nixon, o que provoca uma tempestade. Cumpria a vontade de pôr um ponto final na grande ferida da América. Foi acusado de ter feito um negócio com o ex-Presidente para este se demitir. Foi ao Congresso negar qualquer negócio ou acordo. Queria encerrar o capítulo da "divisão nacional".
"Decidi que devia consagrar todo o meu tempo aos problemas de todos os americanos e não o quarto do meu tempo aos problemas de um único homem." Ou em termos morais: "Afastando as feridas internas de Watergate, mais penosas e venenosas do que as guerras estrangeiras, restauremos a regra de ouro do nosso processo político e deixemos o amor fraterno limpar os nossos corações da suspeição e do ódio."
A maioria dos americanos queria julgar Nixon e a popularidade de Ford foi-se evaporando.
Esquecer o VietnameO mesmo fez em relação ao Vietname. Coube-lhe a parte final da liquidação da guerra. Disse num discurso no dia da humilhante queda de Saigão, em Abril de 1975, após a retirada americana: "Hoje, a América pode recuperar o sentido de orgulho que existia antes do Vietname. Mas não o pode realizar refazendo uma guerra que acabou no que diz respeito à América." E citou Lincoln: "[É] tempo de olhar em frente para uma agenda, para o futuro, para unir, para curar as feridas da nação." E ousou tomar a decisão de permitir a amnistia dos refractários e desertores da guerra.
Note-se que foi inicialmente um ardoroso adepto da aventura vietnamita, depois chamou-lhe "a guerra de [Lyndon] Johnson" e no fim apoiou a política de retirada de Nixon e Kissinger. Atribuiu a responsabilidade da guerra à política colonial francesa.
É este Gerald Ford que é hoje lembrado por todos os políticos americanos. O Presidente George W. Bush frisou que Ford "assumiu a presidência numa hora de tormenta e divisão nacional. Com a sua integridade, bom senso e bondade natural, ajudou a restabelecer a unidade nacional e a confiança pública na presidência". Jimmy Carter, Nancy Reagan, Bush pai ou Bill Clinton fizeram afirmações semelhantes.
Escapou, em 1975, a duas tentativas de assassínio, ambas por mulheres, uma delas discípula do assassino Charles Manson. Mas a comoção não salvou o seu futuro político, já hipotecado. A sua governação, em péssimas condições económicas (decorrentes da crise petrolífera de 1973), com um desemprego e uma inflação recordes, não deixou grandes traços. Na convenção republicana, Ford venceu tangencialmente Ronald Reagan. Mas o candidato democrata, Jimmy Carter, batendo a tecla da moralização da América, rapidamente ganhou enorme vantagem. Ford recuperou e perdeu apenas por dois pontos as presidenciais de 1976. Tentou um regresso em 1980, propondo, com a ajuda de Kissinger, ser vice-presidente de Reagan mas dotado de vastos poderes. A ilusão durou poucas horas.
Ficou também célebre pelas muitas gaffes. Num debate eleitoral com Carter, em 1976, garantiu que não havia "dominação soviética na Europa de Leste". Foi sempre alvo de ditos assassinos. O antigo Presidente Lyndon Johnson (1963-69) dizia do congressista Ford que ele só tinha um problema: "É incapaz de mascar uma pastilha elástica e caminhar ao mesmo tempo."
Chamou-se Leslie KingGerald Ford nasceu em Omaha, Nebraska, a 14 de Julho de 1913, com o nome de Leslie Lynch King. A mãe divorciou-se muito cedo e voltou a casar-se, por isso ele recebeu o nome do segundo marido: Gerald Rudolph Ford Jr. Só aos 17 anos soube quem era o pai biológico.
Deve ao futebol (americano) a entrada na universidade de Michigan e, depois, em Yale, onde se forma em Direito. Trabalhou para sobreviver. Com a II Guerra Mundial, alista-se na Marinha, onde serve durante quatro anos. Depois abriu um escritório de advocacia.
Em 1948 entra em força na política, eleito em Grand Rapids para a Câmara dos Representantes com uma votação esmagadora. Conhece em Washington outro "novato" de quem se torna amigo e determinará o seu destino: Richard Nixon.
Outra mudança: casa-se em Outubro do mesmo ano com Elizabeth Bloomer Warren, antiga dançarina e modelo. Ela era divorciada e mantiveram secreto o noivado até ele vencer a eleição. Tiveram quatro filhos.
No período da Casa Branca, Elizabeth sobreviveu a um cancro da mama, mas viciou-se em medicamentos e tornou-se alcoólica. No fim do mandato foi tratada e fundou um próspero centro de desintoxicação, o Betty Ford Center no seu Rancho Mirage, na Califórnia.