A identificação do medialecto - ou a subcultura dominante
"Medialecto" é o "dialecto próprio dos meios de comunicação social em sentido alargado (jornais, rádio, televisão, Internet...)" (Genette). Estão em causa frases feitas, bordões ou lapsos que decorrem da substituição de palavras ou enunciados correntes por outros que soam moderno, fino e, porventura, tecnocrático aos ouvidos do profissional (apresentador ou jornalista) ou de diversos "actores" do palco da comunicação: políticos, escritores, juristas, entre outros
Talvez pareça estranho que esta coluna, em vésperas de Natal, seja dedicada a um livro duplamente marginal. Marginal no conjunto da obra do autor. Marginal ainda no campo de literatura oferecida ao consumo em época de prendas obrigatórias. Mas, se o autor não se julga capaz de contribuir decisivamente para melhorar o mundo, que fazer se não tentar "animar as festas", na vertente pagã, apresentando o livro a potenciais leitores ou editores (visto que não há ainda tradução portuguesa)? O autor é Gérard Genette. O título, Bardadrac (Seuil, 2006), corresponde à designação dada por uma amiga de Genette a um saco, "tão vasto quanto informe", que transportava sempre consigo e continha demasiados objectos para que fosse possível encontrar aquele que, de momento, lhe fazia falta. Enfim, o caótico recheio de uma mala de senhora...
Gérard Genette, discípulo de Barthes, é uma das figuras proeminentes da narratologia contemporânea. Se a obra de Genette se compõe essencialmente de estudos em que é permanente o recurso ao jargão da teoria literária e da semiologia, o mais curioso neste Bardadrac é que o escritor despe a roupagem de especialista, que o protege contra os demónios do "senso comum", para se arriscar em territórios incertos, próximos do diário pessoal ou da crónica.
Glossário de lugares-comunsBardadrac organiza-se de A a Z como um dicionário, ao longo de 463 páginas. A meio do volume, na letra M, surge o pequeno glossário intitulado "Medialecto", que preenche 54 páginas, entendendo-se por este neologismo o "dialecto próprio dos meios de comunicação social em sentido alargado (jornais, rádio, televisão, Internet...)". Estão em causa frases feitas, "bordões" ou lapsos que decorrem de tentativas de substituir palavras ou enunciados correntes por outros que soam moderno, fino e, porventura, tecnocrático aos ouvidos do profissional (apresentador ou jornalista) ou de diversos "actores" do palco da comunicação : políticos, escritores, juristas, entre outros.
O "medialecto" impõe-se, de certa maneira, como "espelho e modelo da nossa subcultura dominante". "Amnistia. Sempre ampla"; "Banalidade. Sempre aflitiva"; "Carreira. Dizer sempre "Eu não gosto desta palavra" (...)"; "Calor. Sempre comunicativo"; "Carismático. Equivalente mediático de fotogénico"; "Despotismo. Sempre esclarecido (no início)"; "Figura. Sempre emblemática"; "Geometria. Sempre variável"; "Imagem. Sempre de marca"; "Isolamento. Sempre esplêndido"; "Jovens. São de dois tipos: os jovens propriamente ditos, e os "menos jovens", que antigamente eram velhos": "Lapso. Sempre revelador; sublinhá-lo com tanto mais força quanto se desconhece o que revela"; "Necessidade. Sempre imperiosa"; "Oposição. Sempre estéril"; "Perdão. Equivalente mediático do "acto de pedir perdão": "O perdão do Papa às vítimas da Inquisição" (...). Essas vítimas já não estão infelizmente em estado de lhe conceder o perdão"; "Pragmático. Equivalente mediático de oportunista"; "Sedutor. Antigamente era sempre vil, hoje é sempre grande"; "Tema. Sempre recorrente"; "Vindicta. Sempre popular"...
Esta pequena perspectiva do glossário dos lugares-comuns da comunicação social, identificados por Genette, destina-se apenas a interessar o leitor. Com uma pequena ressalva: não tentem aplicá-lo aos meus próprios artigos. Corro o risco de encontrarem exemplos válidos para corroborá-lo. Afinal, quem escapa à tal "subcultura dominante", em que, a gosto ou contragosto, participamos?
O outro GenetteAnunciado como "um (livro de ) Gérard Genette inesperado" este Bardadrac, em coerência com o programa implícito no título, contém um pouco de tudo: fragmentos de memórias, crónicas, impressões de viagem, "entradas de "diário pessoal", aforismos, anotações sem classificação possível. O especialista eclipsou-se, na aparência (na forma de enunciação), para dar lugar ao "eu" do memorialista, diarista e cronista. O narratólogo deu lugar ao outro Genette - o Genette informal desconhecido dos seus alunos propriamente ditos ou dos leitores da sua obra académica...
O especialista permanece, contudo, numa espécie de subtexto. O erudito, esse, manifesta-se a cada página, quase diria a cada linha. As figuras marcantes da sua geração - Foucault, Barthes, Althusser ou o seu colega Todorov - surgem evocados em testemunhos pessoais. O seu próprio percurso político é assumido. Conta a ruptura com o PCF, por alturas da invasão soviética da Hungria, em 1956. Dúvidas, mal-estar, hesitação. Recurso ao "confessor-chefe" da sua geração de universitários comunistas: Louis Althusser (os seus companheiros de então diziam: "Je me suis fait althusser"). Nessa entrevista, após ter ouvido o jovem Genette, o "sacerdote" Althusser retorquiu: "O que tu dizes não pode ser verdadeiro, porque nesse caso seria necessário abandonar o partido." O interlocutor tomou-o à letra: "Essa refutação pelo absurdo foi um raio de luz..." Demitiu-se do PCF.
Um Gérard Genette aligeirado, light (como se diria em "medialecto", ou em "mediatês")? Talvez seja injusto formular assim. Em qualquer caso, em Bardadrac o escritor procura outro registo. O que tem mérito: qual seja o de, por uma vez, sair dos círculos de iniciados e (talvez) aceder a públicos mais vastos. Não é fácil prognosticar se o propósito será atingido. O "Genette ligeiro" é muito mais "pesado" do que a literatura de supermercado. Apela a outros leitores. Neste terreno, a concorrência é sempre desleal. Até que seja estabelecido - alguma vez será? - "o comunismo dos entendimentos", como dizia Germano de Meireles, intelectual (algo esquecido) da geração de 70... Professor universitário
P.S.1 - Excelente crítica. José Manuel Nobre Correia, professor da Universidade Livre de Bruxelas, na área da comunicação e da informação, publicou uma "carte blanche" (leia-se: "tribuna livre"), no diário Le Soir (Bruxelas), dedicada ao "falso telejornal" da televisão belga (francófona), em que foi anunciada a declaração de independência da Flandres e a fuga do Rei, rumo ao exílio numa antiga colónia de África (13 de Dezembro).P.S. 2 - O título desta coluna (tema: Augusto Pinochet) na semana passada - "O teu ditador é pior do que o meu" - foi, involuntariamente, "roubado" a um artigo de José Medeiros Ferreira (publicado no DN, em Outubro) acerca de Salazar e do concurso sobre os Grandes Portugueses). As minhas desculpas.