18 de Dezembro de 1961: o princípio do "fim"
Houve uma manhã em que fiquei um momento em silêncio perante esta bandeira no deserto cinzento da sala do museu. O guarda, lá ao fundo, dormitava. Olhei para o pedaço de pano poeirento e disse mais uma vez adeus ao Portugal de que gosto e que já não existe
No dia 18 de Dezembro de 2006 terão passado 45 anos sobre a queda do estado português da Índia. A data, como qualquer data que dizemos histórica, é importante apenas simbolicamente. Esta data em particular é mais importante para a história da ideia de Portugal do que para a história política do país (embora tenha assinalado o início do fim do império colonial). De facto, é possível que a invasão de Goa, Damão e Diu pelas forças armadas indianas e a rendição de quase todos os militares portugueses que aí serviam tenha sido um factor de destaque na afirmação de um certo pessimismo português, uma "ideia de fim" que é hoje dominante em muitos sectores intelectuais, para além de ter fundo impacto popular.Há já alguns anos que vários comentadores - mas também historiadores, filósofos e outros profissionais das ideias - vivem como que fascinados pelo pensamento apocalíptico da Geração de 70 do século XIX e glosam interminavelmente temas anterianos e queirozianos acerca da decadência de Portugal como nação ou como entidade colectiva digna de existir. A procura de citações de Eça ou Ramalho para aplicar à situação presente do país tornou-se uma espécie de jogo de sociedade.
A esta deriva autofágica responde a deriva tecnocrática da crença no P"rá frente Portugal, no Portugal em Acção, protagonizada pelos dirigentes do PS e do PSD e pelos respectivos governos.
Nem uma nem outra destas duas narrativas sobre o destino pátrio são novas, como se sabe, embora a segunda exiba todos os tiques irritantemente saloios do novo-riquismo. Para não ir mais atrás, provêm do século XIX. E para simplificar, têm origem nas gerações de 70 e 90, respectivamente. O pessimismo de Antero - confirmado pelo ultimato britânico de 1890 - foi confrontado pelo optimismo voluntarista da pequena burguesia republicana, que viu a revolução de 1910 como a redenção da pátria pela modernidade.
Deste modo, entre a época de Antero, Eça ou Ramalho e a daqueles que agora os citam para dizer que o país "está na mesma", passou cerca um século de I República e de Estado Novo, em que o país não ficou "na mesma", mas, pelo contrário, esteve dominado por narrativas optimistas (a do Estado Novo pelo menos até à década de 1960) que mobilizaram opiniões públicas também elas crentes nas virtudes e no progresso de Portugal.
Foi sobretudo a oposição republicana anti-salazarista que repegou no discurso catastrofista da Geração de 70 para com ele castigar o Estado Novo, culpando-o pela manutenção do "atraso secular" da pátria e conseguindo, como efeito colateral, apagar da história, como se tivesse sido somente propaganda, o optimismo que se exprimiu, por exemplo, nas comemorações dos centenários na década de 1940.
Aquilo que justifica o retorno em força do pessimismo é o descalabro da legitimidade do presente regime, a III República (ou a República de Novembro, como também se lhe pode chamar): em primeiro lugar, o falhanço económico representado pelo último lugar que o país ocupa na União Europeia, apesar de anos a fio a receber subsídios, ou seja, apesar de uma economia toda ela subsídio-dependente e assente naquilo que milhares e milhares de portugueses percebem como tendo sido práticas fraudulentas nas quais participaram e das quais beneficiaram. Depois, a suspeita ética que pesa sobre as elites políticas centrais e locais como um manto de chumbo e a ideia generalizada de que vivemos num país onde a lei não é respeitada. Finalmente, a noção difusa de que "não somos capazes" e de que somos todos mais ou menos corruptos e ladrões.
A tudo isto se vem acrescentar periodicamente - agora, por exemplo, a propósito das memórias de Almeida Santos - a ideia de que alguma coisa correu drasticamente mal na descolonização, tendo assim acabado de uma forma cobarde a narrativa mais heróica da história de Portugal - a dos Descobrimentos.
Talvez o pessimismo tenha começado a renascer em 18 de Dezembro de 1961, ou melhor, algumas semanas depois, quando, ultrapassando a censura salazarista, se soube em Portugal da rendição das tropas portuguesas na Índia e dos episódios dignos de uma ópera-bufa que a acompanharam: Salazar a exigir aos militares que morressem em combate, depois de os ter desarmado sistematicamente durante anos... Pode ter sido de facto então, há 45 anos, que teve início o "fim de Portugal", só interrompido pela revolução do 25 de Abril estrangulada em Novembro.
Em 1961, caiu sem glória e sem orgulho a Índia de Vasco da Gama e Albuquerque, a Índia do mito lusíada. Em 1975, o resto do império. Depois, a crença na "Europa".
O entusiasmo patriótico-futebolístico e o agitar histérico das bandeiras a que assistimos em 2004 e no corrente ano só pode ser compreendido neste quadro histórico. O grito colectivo de "Somos os maiores!" é como que uma "denegação" (para usar o vocabulário psicanalítico): gritamo-lo, porque sentimos que não somos "os maiores". A escolha popular-televisiva do "maior português" e os debates a que tem conduzido inscrevem-se nesse mesmo ambiente de crise de legitimidade.
Talvez não fosse pior que, em Dezembro de 2006, 45 anos depois do fim, nos lembrássemos dos portugueses que, na Índia, não se renderam. Sem armas, sem munições, já sem legitimidade histórica, esmagados pelo potencial indiano, não se renderam: a guarnição de Damão que resistiu durante muitas horas com elevadas baixas. O primeiro-grumete telegrafista Rosário da Piedade que morreu quando o navio Afonso de Albuquerque enfrentou em condições desesperadas a armada indiana na barra de Goa. O comandante do navio, capitão-de-mar-e-guerra Cunha Aragão, que ficou gravemente ferido, mas ainda conseguiu transmitir ao oficial imediato, capitão-de-fragata Pinto da Cruz, a ordem de assumir o comando e não se render. O comandante da lancha Vega, Oliveira e Carmo, que morreu em combate com dois dos seus homens ao largo de Diu, metralhado pelos aviões indianos, contra os quais, cumprindo o seu dever, abriu fogo (três outros tripulantes ficaram feridos e a lancha destruída). A guarnição do forte Aguada em Goa. Os combatentes da ilha de Angediva.
E de cada vez que sentirmos a tentação de ir buscar a bandeira por causa do futebol ou de mais uma inauguração de um troço de auto-estrada, lembremo-nos de que, exposta numa vitrine da sala do Património Marítimo do Museu Nacional de Deli, capital da Índia, está a bandeira verde e vermelha do Afonso de Albuquerque, capturada pela marinha indiana, quando o navio, quase completamente destruído, deu à costa.
Houve uma manhã em que fiquei um momento em silêncio perante esta bandeira no deserto cinzento da sala do museu. O guarda, lá ao fundo, dormitava. Olhei para o pedaço de pano poeirento e disse mais uma vez adeus ao Portugal de que gosto e que já não existe. Historiador