Homens em luta

Segredo de polichinelo - o "trailer" revela muita coisa que não devia revelar, envolvendo "20,13" num leve aroma de sensacionalismo que não lhe faz favores nenhuns. Mas, ao mesmo tempo, o "trailer" apenas sublinha como o centro do filme não é essa intriga policial que parece funcionar como seu motor: não passa de um simples "macguffin" que permite ao realizador desenhar um retrato de grupo, incisivo, de homens sob pressão.

Não é por acaso que assim seja: "20,13" - que começou por se chamar "Purgatório" - é a segunda parte de uma trilogia à volta da guerra colonial iniciada com o excelente e incompreendido "Inferno" (1999). Já aí, numa história de cariz policial passada no Portugal contemporâneo, Leitão explorava as dinâmicas interiores de um grupo de homens cuja amizade foi moldada no cadinho violento da guerra colonial. Em "20,13", o realizador faz "marcha atrás" para se debruçar sobre o "olho do furacão", sobre o próprio cadinho, filmando de modo tenso e seco os laços de camaradagem entre homens forçados a matar ou morrer, onde aquilo que se é (branco, preto, nortenho, alentejano, intelectual, analfabeto, homo- ou heterossexual) pouca ou nenhuma importância tem face à necessidade de garantir a sobrevivência - não só pessoal, mas também daqueles que ali estão. É com esses laços sociais e emocionais que a psicologia militar joga ao desenhar os programas de treino que vão transformar os mancebos em soldados - e, paradoxalmente, o momento de abnegação em que um soldado se sacrifica pelos camaradas é tudo menos patriótico, militarista ou político: é uma questão pura e simples de sobrevivência do grupo.

tribos.

O que Leitão fazia em "Inferno" e faz agora em "20,13" é então filmar essa "tribo" dos homens guerreiros, concentrar-se num universo exclusivamente masculino, onde os valores (hoje fora de moda) de lealdade, honra, nobreza de espírito, coragem deixam de ser meros conceitos abstractos e ideais maiores para adquirir uma ressonância prática, pragmática. A esse nível, "20,13" podia ser um filme dos anos 40 ou 50 (passa aqui a sombra de Howard Hawks) no classicismo da construção, na elegância directa e sóbria da encenação, no modo económico e seco como o realizador e o excelente elenco de conjunto (onde não há um actor mais conhecido que desequilibre o retrato) definem as suas personagens (um sotaque, um olhar, uma palavra, um gesto, um sorriso chegam). É brilhante o modo como Leitão desenha a forma como algumas personagens habitam esta guerra (o alheamento do dr. Venâncio de Ivo Canelas, consumido pelo ciúme da sua esposa; a paz interior do capelão de Nuno Nunes) ou a interacção entre os "rasos" que compõem a companhia.

E não é preciso mais do que uma breve conversa de passagem (ainda por cima magistralmente interpretada por Adriano Carvalho e Marco d"Almeida) para percebermos que o capitão Costa é um homem "do regime" que acredita (talvez para se convencer a si próprio) nos "valores mais altos" do guerreiro português e que o alferes Gaio é um dos jovens "relutantes" enviados para combater uma guerra absurda em que não acredita. Claro que nenhum dos dois é aquilo que parece - o herói do regime sente-se dilacerado pela sua "fraqueza" carnal que o perde (literalmente) de amores por um enfermeiro da companhia (Angélico Vieira, um dos integrantes dos D"ZRT), o "resistente" parece ter sido feito para a vida militar. Ambos acabam por reconhecer demasiado de si no outro, sublinhando ainda mais as dinâmicas quase exclusivamente masculinas que animam o filme. Talvez não seja, por isso, de espantar que este filme de homens dê às mulheres um papel determinante mas quase passivo. O "macguffin" policial é posto em movimento pela presença na base de Esperança (Carla Chambel), a mulher do médico e seu objecto de ciúme, e pela chegada de Leonor (Maya Booth), a mulher do capitão que vem passar o Natal com o marido da qual está desavinda. Juntas, a sensual Esperança e a angustiada Leonor funcionarão como "gatilho" dos crimes que propulsionam o fio condutor do filme, ao obrigar estes homens a confrontar-se com as suas pulsões mais escuras que acabam por trazer ao de cima sem o esperar, acusadas nas citações bíblicas encontradas junto aos corpos (uma das quais, o versículo 13 do capítulo 20 do Levítico, "dobrada" de número de cacifo da camarata dos soldados, dá o título ao filme). Mas o seu papel resume-se precisamente ao de gota d"água que faz transbordar o copo: mais do que personagens de corpo inteiro, Esperança e Leonor são "bonecos" meramente funcionais cuja presença é necessária para a conveniência da narrativa, mas não cumprem nenhuma função dramática.

pretextos.

Aliás, pelo final das duas horas de projecção, torna-se inescapável a sensação de que a intriga policial é resolvida apenas porque é preciso dar um fecho - porque, no fundo, é mero pretexto para se falar daquilo que faz um homem, que não reside nas fachadas nem nas aparências que se procuram manter, mesmo à custa da verdade (porque, como se diz a certa altura, "no Exército não há maricas e os oficiais não matam soldados"). Por isso, também, "20,13" é um filme sobre um Portugal que só aparentemente ficou lá atrás, mas cujas feridas continuam a sobreviver logo abaixo da superfície; sobre um passado que continuará presente enquanto essas feridas não vierem à superfície. Não é um filme sobre a guerra colonial, embora por lá passe: é um filme sobre uma certa maneira de ser português, atávica e intemporal, que continua a existir hoje, iluminando com a luz viva de um "rocket" o seu predecessor "Inferno".

"20,13" é, provavelmente, o melhor trabalho de Joaquim Leitão, na intersecção do que deve ser um cinema que pensa no grande público (e não o trata como atrasado mental) mas tem evidente marca autoral. Deseja-se ardentemente que não lhe caiba em sorte o mesmo acolhimento frio que recebeu "Inferno": seria imerecido e profundamente injusto passar ao lado de um filme assim.

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