Barragem de Picote vai ser classificada como património nacional
Complexo da barragem, pousada e aldeia junto ao Douro Internacional, no concelho de Miranda, foi construído há meio século
A Barragem de Picote, no Douro Internacional, e a aldeia construída junto a ela há cerca de meio século vão integrar a lista do património nacional classificado, disse ontem à Lusa fonte do Instituto Português do Património Arquitectónico (Ippar). O processo de classificação está já em fase de conclusão, faltando apenas, segundo David Ferreira, responsável pelo processo, o parecer do conselho consultivo do Ippar e a posterior homologação da ministra da Cultura.É a primeira vez que o Ippar classifica uma barragem, infra-estrutura que se distingue das restantes por ser considerada "um paradigma da arquitectura moderna". E também porque, a partir dela, foi construída uma "cidade ideal" num lugar inóspito do Nordeste Transmontano, explica David Ferreira.
A Barragem de Picote e a aldeia de Barrocal do Douro foram edificadas no concelho de Miranda do Douro entre 1953 e 1958, a expensas da Hidroeléctrica do Douro (Hidouro), uma das várias empresas criadas na época para a electrificação do país e que deram origem à EDP.
Num local onde a natureza permanecia selvagem, três jovens arquitectos recém-formados na Escola de Belas-Artes do Porto (ESBAP) - Archer de Carvalho, Nunes de Almeida e Rogério Ramos - tiveram liberdade para dar azo à criatividade e transformar um morro das escarpas do Douro Internacional num local habitável e "revolucionário" numa região isolada onde faltava praticamente tudo.
O projecto concretizado há cinquenta anos é hoje visto como um modelo de "cidade ideal", fundada a partir do nada com todas as infra-estruturas e serviços, inacessíveis à maioria da população daquela época. O novo aglomerado tinha capacidade para suportar o quotidiano de quatro mil pessoas, número em muito superado durante a construção do empreendimento.
Na mesma linha foram pensados, mais abaixo, junto ao rio, os edifícios de apoio à produção eléctrica e a própria barragem, a primeira a ser construída pelos portugueses no rio Douro e que ganhou o nome da localidade mais próxima na época, Picote.
De acordo com David Ferreira, toda esta intervenção vai ser classificada como "conjunto de interesse público", um grau imediatamente inferior a monumento nacional. A distinção, acrescenta este responsável do Ippar, deve-se ao processo inovador de construção, que só foi descoberto décadas depois por dois arquitectos da ESBAP, Fátima Fernandes e Michele Cannata.
Os pais de Fátima Fernandes trabalharam na barragem e foram os laços afectivos que a levaram, com o colega, a estudar as três barragens portuguesas do Douro Internacional: Picote, Bemposta e Miranda do Douro. Fernandes e Cannata revelaram o "moderno escondido" deste projecto numa publicação feita há uma década atrás, em que defenderam que as barragens do Douro Internacional "são obras de arte e uma parte da história da arquitectura moderna". "Fizeram há cinquenta anos o que hoje se está a fazer", disse à Lusa Michele Cannata, que, com Fátima Fernandes, desencadeou o processo de classificação do Picote em 2002. Lusa
Há mais de 50 anos, o jovem arquitecto Archer de Carvalho foi enviado ao Douro Internacional para projectar uma barragem que hoje marca a história da arquitectura moderna. Conhecia Trás-os-Montes da caça, mas jamais imaginou o que o esperava quando responsáveis da Hidouro lhe disseram: "Vai para lá uma semana, senta-se nas pedras e medita". Quando chegou a Picote e desceu ao rio Douro, Archer apenas encontrou imponentes fragas e a natureza no seu estado mais selvagem. O arquitecto apercebeu-se também da grandiosidade do sítio, da variedade da vegetação e do colorido das escarpas que encaixam o rio dividido entre Portugal e Espanha e que acabaram por inspirar o que classifica como "a obra da sua vida". Foi a partir desta imagem da natureza crua que Archer de Carvalho, agora quase a fazer 80 anos, e mais dois colegas arquitectos, Rogério Ramos (já desaparecido) e Nunes de Almeida, projectaram a primeira barragem portuguesa do rio Douro (Picote) e uma pequena "cidade ideal" na sua ilharga. Começaram por construir uma pousada provisória e uma estrada, já que "os carros só chegavam até Picote" e era necessário andar mais "cinco ou seis quilómetros por monte" até ao rio. Decidiram então explorar o morro que se erguia três quilómetros acima do rio, e aí construíram a aldeia de Barrocal do Douro, que chegou a albergar mais de quatro mil pessoas.