Não apaguem a memória, mas também não lembrem só uma parte da memória
Omovimento cívico Não Apaguem a Memória! tem conduzido uma campanha a favor da preservação dos locais e sítios onde durante a ditadura de Salazar e Caetano se prendeu, se julgou, se torturou durante 48 anos. O movimento nasceu de um protesto contra a transformação do edifício onde funcionava em Lisboa a PIDE num condomínio fechado e apresenta como seus objectivos a transformação da cadeia do Aljube, do Forte de Peniche, do Forte de Caxias, da sede da PIDE/DGS e suas delegações no Porto e em Coimbra, dos Tribunais Plenários da Boa-Hora em Lisboa e de S. João Novo no Porto, do Tribunal Militar, dos Presídios Militares, da Companhia Disciplinar de Penamacor, da Prisão de Angra do Heroísmo e do Campo de Concentração do Tarrafal "em lugares de memória da resistência e da liberdade conquistada". A sua última manifestação foi feita junto do Tribunal da Boa-Hora lembrando uma das faces mais repelentes e indignas, para não usar outras palavras, do regime ditatorial, e a que mais escapou à reposição da justiça - a dos "juízes" do regime. Protegidos pela corporação, juízes e magistrados que tinham tido de forma repetida uma actuação vergonhosa para homens que se diziam do direito escaparam do opróbrio público que a sua acção exigia. Quem assistiu ou foi sujeito a uma julgamento antes do 25 de Abril sabe bem do que falo e por isso toda a memória é pouca.
Dito isto, convém no entanto não esquecer que o "apagar da memória" não se limita à displicência e complacência dos dias de hoje em relação a um passado político que cada vez menos diz alguma coisa aos tecnocratas que nos governam, passado que ignoram quando não o acham antiquado e incómodo. Há também outros intervenientes nos mecanismos do esquecimento que usam a reivindicação do "lembrar" para iluminar partes da história e esquecer outras, em função de um utilitarismo político que só contribui para enfraquecer o que poderia ser a utilidade cívica destes movimentos.
Tenho há muito tempo a convicção de que é necessário abandonar de vez o ponto de vista repressivo/ético, a história de um painel de dupla face e um pouco esquizofrénico entre as vítimas e os algozes, entre a vitimização e a épica da resistência. Esta aproximação à questão da memória da ditadura serve às mil maravilhas para a sua instrumentalização política e acaba por servir mais para a propaganda do que para a normalização da memória como conhecimento. Ela é da mesma natureza do saudosismo salazarista que se alimenta de votos secretos para os Grandes Portugueses da RTP e de best-sellers sobre o Grande Proibido, seus amores e suas "opiniões" avulsas, da produção livreira do Natal.
Veja-se o caso do PCP, um partido que de há muito considera esta "memória", que o movimento cívico Não Apaguem a Memória! quer preservar, como sua propriedade privada. Acaso não era suposto o movimento dizer alguma coisa sobre a política do PCP de fechar os seus arquivos e apenas divulgar documentos escolhidos a dedo para não ferir uma história tão "oficiosa" como falsa? Ninguém contesta o direito legal que o PCP tem de não abrir os seus arquivos, mas talvez se deva exigir ao partido, que participa nas iniciativas do movimento Não Apaguem a Memória! e as apoia, que se comporte de forma diferente e que não ajude a sonegar do conhecimento de todos a parte da memória colectiva que se encontra fechada nas suas sedes. Não é um objectivo do movimento "lutar pela salvaguarda da memória da resistência à ditadura do Estado Novo, para que seja dignificada a luta pela liberdade e pela democracia"?
Não se exige ao Não Apaguem a Memória! que faça a história da oposição, mas sim que dê dos homens que resistiram à ditadura um retrato mais fiel à sua acção e não os reduza aos fotomatons propagandísticos em que muitas das suas vidas se tornaram. O "apagar da memória" não se fez só transformando a sede da PIDE num condomínio, mas faz-se todos os dias quando homens como Vasco de Carvalho, José de Sousa, Pável, Fogaça, Piteira Santos, Manuel Domingues, Álvaro Duque da Fonseca, Galvão, Manuel Sertório, Cunha Leal e muitos, muitos outros, vivam num limbo do esquecimento ou presos na caixinha da parte da sua vida que é considerada politicamente correcta.
Por outro lado, a tendência destes movimentos cívicos para se assumirem com um papel puramente reivindicativo aos "poderes públicos" leva-os a ter uma acção residual no trabalho que poderiam realizar de defenderem eles próprios a "memória" favorecendo edições, recolhendo memórias, preservando documentos e testemunhos que de outro modo se vão perder. Não é essa a sua vocação, dirão, não se querendo substituir a arquivos e outras instituições que têm essa obrigação. Mas porquê, se tantos exemplos existem fora de Portugal de um trabalho imprescindível dessa natureza feito entre a militância e a história, mas sempre útil para a memória. É verdade que o sítio na Internet do movimento (http://naoapaguemamemoria.blogspot.com/) já começou a incluir artigos e notas necrológicas, mas percebe-se que o movimento se sente mais à vontade a seguir uma política de salvaguarda do património repressivo do que a lembrar vidas concretas dos homens que resistiram e que possam chocar com histórias "oficiais". E mesmo essa salvaguarda patrimonial será difícil se não se concentrar numa aproximação museológica consistente para a qual apenas o Forte de Peniche me parece ter condições de exequibilidade.
Mas o principal problema que subsiste é de concepção, é a crença de que a memória da ditadura se mantém viva contrapondo ao "fascismo" um "antifascismo" memorialístico assente numa dicotomia moral entre o bem e o mal que se reproduz na democracia entre os "resistentes" e os indiferentes, entre os que "querem" lembrar-se e os que "querem" esquecer-se. Ora entre os que querem esquecer não estão apenas os próceres da ditadura, hoje um resto de um resto, mas muitos a quem parte da memória é útil e outra parte maléfica e diabólica. Se o movimento cívico Não Apaguem a Memória! não conseguir ultrapassar este lado da recusa de lembrar ficará preso num gueto político que o condenará a ajudar mais o esquecimento que a memória. Historiador