Como é que, de repente, uma personagem assim, que pode ser "repugnante" (palavra de Tiago Dores, do Gato Fedorento), move tantas "paixões"? Borat, jornalista cazaque criado pelo cómico inglês Sacha Baron Cohen, é um fenómeno. Nos EUA "Borat: Aprender Cultura da América para Fazer Benefício Glorioso à Nação do Cazaquistão" bateu o recorde para filmes estreados em menos de mil salas (já ia em mais de 76,6 milhões de euros no fim-de-semana passado). Parte do sucesso deve-se às polémicas que espalharam o seu nome pelo mundo. E que até começaram em Lisboa, na cerimónia de entrega dos prémios MTV 2005, apresentada por ele próprio, Borat. Dias depois da transmissão do programa, o Cazaquistão anunciava processar o cómico por ofender o país (seguiu-se a "censura" do filme, o fecho do site alojado num endereço cazaque, quatro páginas de publicidade no "The New York Times" a exaltar as virtudes do Cazaquistão, o financiamento de um filme para servir de contra-informação e tudo acabou com o convite ao humorista para visitar o país).
Não é, de facto, simpática a imagem do Cazaquistão: país primitivo, representado por um pacóvio, cruelmente ignorante, que desconhece as regras de convivência na sociedade "moderna". Mas é uma sátira que, com os seus exageros, tem como objectivo provocar o riso. Porque é que o Cazaquistão se ofendeu tanto? "Não há um manual para lidar com situações deste género", diz o diplomata Francisco Alegre Duarte. "Qualquer Governo ter-se-ia mexido. Num país com aquela dimensão, a maior das ex-repúblicas soviéticas, com uma identidade nacional ainda incipiente, é normal que as autoridades reajam e tentem mostrar serviço." Ao princípio, o filme chocou-o um pouco. Incomodou-o o gozo com "gente que é pobre e tem poucas defesas". "Prefiro o humor em que as vítimas são os poderosos", diz.
João Leal, antropólogo, acrescenta que se nota a preocupação de escolher um país "suficientemente diferente mas por outro lado próximo". Se fosse muito distante "não conseguiria estabelecer aquele diálogo que a personagem estabelece." Carlos Coelho, especialista em criação e gestão de marcas, lembra que, com o filme, o Cazaquistão conseguiu aquilo que não conseguiu durante anos e que é uma das coisas "mais difíceis a nível planetário": "Passou de nome desconhecido a alguma coisa." De facto, em Setembro, um estudo publicado nos EUA revelava que mais americanos estavam agora mais familiarizados com o Cazaquistão do que há quatro anos. A maioria tinha ouvido falar do país através de um jornalista...Borat. Aliás, o Governo cazaque, diz Carlos Coelho, já está a aproveitar a notoriedade. Apesar de a imagem projectada no filme ser negativa, "toda a gente sabe que é brincadeira": as pessoas "têm capacidade" para "detectar o que é falso". "Ninguém acredita que o Cazaquistão seja o país com as prostitutas mais limpas da Ásia Central."
A verdade é que a imagem que passa é a de um país com "uma posição subalterna no mundo", com costumes estranhos, "nomeadamente na esfera sexual", embora tudo isto seja caricaturado, nota o antropólogo João Leal. "Em geral o poder político não tem muito sentido de humor. Uma coisa é rirmo-nos de nós próprios e tudo se passa numa intimidade cultural, outra é quando vem de fora". É isto que acontece com os discursos negativos sobre a identidade nacional, que têm menos legitimidade quando são feitos por alguém que não pertence ao país.
O Cazaquistão elegeu Borat como inimigo público, mas quem sai pior não serão os EUA? Sim. Sacha Borat Cohen escolheu o Cazaquistão, diz Ricardo Araújo Pereira, mas podia ter escolhido certas regiões de Portugal ou outro país "que soe a exótico e subdesenvolvido". "O Cazaquistão é um instrumento" para fazer a caricatura de um país, enquanto em relação aos EUA há uma "tentativa clara de satirizar". O diplomata vê a imagem do Cazaquistão no filme como "uma espécie de Cochinchina moderna": "Existe mas está suficientemente distante. É um daqueles países que está desorbitado da globalização, pelo menos em termos da perspectiva ocidental."
É mais engraçado, concorda Francisco Alegre Duarte, o retrato dos EUA - "com alguns aspectos aterradores" -, os gags de humor grotesto ou os mais políticos, como as cenas do rodeo ("dos mais terríveis para os EUA"), da missa evangelista e da viagem com os estudantes. "Ele aborda todos os assuntos mais delicados de forma politicamente incorrecta: a religião, o ultrapatriotismo e ultramachismo."
Francisco Duarte, que viveu mais de três anos em Nova Iorque, diz que a imagem do Cazaquistão não corresponde à realidade enquanto há uma sucessão de fotografias "da realidade americana pura e dura". "Embora a América não seja só aquilo... Há várias Américas, há uma América generosa, curiosa e cosmopolita, mas também os evangelistas, a cultura machista e ignorante." É um retrato fragmentado que "toca à esquerda e à direita", ao politicamente correcto (feministas e homossexuais incluídos), a vários tipos e situações norte-americanas, diz João Leal. E acrescenta Carlos Coelho: Borat satiriza a estrutura social e política dos EUA, os aspectos mais delicados do país - além de satirizar o "sonho de silicone". "O país mais culto aparece ali como uma sociedade básica."
comédia de embaraçoAlgumas cenas de "Borat:..." foram encenadas mas a maioria é feita com americanos a quem o cómico se terá apresentado como jornalista cazaque, fazendo perguntas absurdas às quais as pessoas dão respostas ainda mais absurdas. Mete-se numa carrinha com um grupo de jovens e eles dizem coisas tão ofensivas para as mulheres quanto o retrato que se dá delas no Cazaquistão; pior: num rodeo, põe uma audiência inteira a aplaudi-lo depois de dizer que Bush devia beber o sangue dos terroristas...
Esta estratégia de "apanhados" provocou polémica nos EUA, com os estudantes a dizerem que tinham sido embebedados pela equipa e induzidos a fazer comentários racistas e sexistas ou com o grupo de feministas e os convidados de um jantar sobre etiqueta a queixarem-se de que não sabiam que Borat não era jornalista cazaque mas um cómico. O filme tem um "humor no limite", considera João Leal. Pela caricatura do Cazaquistão (que pode confirmar visões negativas sobre os da Europa de Leste e da Ásia) e porque levanta a questão ética em relação às pessoas "apanhadas". (Mas isso não impede que seja um bom filme de humor, diz.) "Eventualmente coloca" essa questão ética, diz Tiago Dores. Do ponto de vista humorístico "tem imenso potencial" e desta perspectiva a "avaliação a fazer é se funciona ou não". "É difícil ter uma situação mais privilegiada do que alguém desprevenido e conseguir descontextualizar. Não é novo." E Carlos Coelho desconfia mesmo que as polémicas foram previstas pelos produtores e utilizadas como ferramenta publicitária. "Estou convencido de que grande parte destas coisas se sabia, à partida, que poderiam acontecer. Não me parece que os produtores fossem ingénuos."
Mas que humor é este que coloca as pessoas em situações ridículas, a dizerem coisas politicamente incorrectas, tão primárias? "Ultimamente em Inglaterra há uma tendência indefinida a que chamaram "embarrassment comedy"", contextualiza Araújo Pereira. Steve Coogan, os autores da série The Office e as personagens criadas por Cohen - Ali G ou Borat - "fazem muito isso". Junta-se uma "crueldade insultuosa" que "funciona bem": "Há uma agressividade crua que é divertida sobretudo quando há um confronto da personagem com pessoas reais", diz.
Carlos Coelho acha que o filme não é apenas de humor: "É duro e não é só para rir." E pode vir a ser um "caso de estudo em relação aos formatos de realidade ficcionada" - "a grande preocupação do futuro". Reflecte também um novo movimento, diz: "Existe uma nova ordem e é impossível e ridículo o senhor Putin [presidente russo] dizer que vai proibir a exibição do filme" - porque há dezenas de vídeos do filme, inclusivamente com cenas que foram cortadas, no Youtube. "Essa nova ordem é um veículo imparável ligado em quase todo o mundo e que permite distribuir ideias, imagens, ter feedback, permite que as pessoas se agreguem em causas a uma escala planetária. Há um novo parlamento planetário onde as pessoas discutem as suas ideias." Isso quer dizer que "estamos a entrar numa era do não controlo": "O exercício de desenvolvimento do século passado foi de controlo, sobretudo industrial. Hoje estamos numa economia do conhecimento e isso é feito não por se controlar mas por tirar partido de um novo conhecimento feito pelas pessoas. Vai ganhar quem conseguir tirar partido desse caos.", conclui o especialista em marcas.
Borat, acredita, já tirou partido dele.