O flagrante delito e o flagrante deleite

O mundo está dividido em dois campos: os que acham graça e os que não percebem. É de propósito. Sacha Baron Cohen não quer outra coisa: o humor de máximo denominador comum não tem garra, não tem chama, não tem graça. É nas franjas, na margem que nem todos percebem e que cria cultos, que se cria o futuro "mainstream". À sua maneira, Borat Sagdiyev, o repórter de um Cazaquistão de opereta moldado a partir dos preconceitos do mundo ocidental que Baron Cohen criou (diz ele) a partir de um empresário que encontrou numa viagem pela Rússia, é tão revolucionário como (salvaguardando as devidas distâncias) o "non-sense" do Goon Show ou dos Monty Python foram para a Inglaterra dos anos 50 e 60, a geração do "Saturday Night Live" para a América dos anos 70, ou o Herman de "O Tal Canal" para o Portugal dos anos 80 o foram nos seus tempos. Uma série de novos paradigmas que começaram, todos, na televisão - em tempos, espaço mais livre de invenção do que hoje - e que nem sempre se transferiram com sucesso para o cinema: novas maneiras de pensar e exibir o humor, numa tradição anglo-americana que exprime um sentido de humor nada convencional, levantando questões pertinentes ao mesmo tempo que coloca em causa as regras do que é entendido como "mainstream". Ah, mas reside aí o busílis: será isto humor? Depende do ponto de vista. um ovni. "Borat: Aprender Cultura da América para Fazer Benefício Glorioso à Nação do Cazaquistão" é um OVNI enfurecedoramente desafiador que se recusa a encaixar em qualquer categoria. A personagem que Baron Cohen criou na TV transplanta-se para o cinema sem mexer um milímetro nas suas coordenadas originais: um falso jornalista de um país suficientemente longínquo para ninguém se preocupar com a veracidade das suas afirmações, que confronta gente real com situações surreais na melhor tradição dos "apanhados" televisivos. É o lado menos interessante do filme de Larry Charles (um dos responsáveis da série Seinfeld): tudo isto não passa de mero programa de apanhados esticado para hora e meia, onde Borat sublinha as suas ignorância, misoginia, xenofobia, sexismo e escatologia para melhor confrontar os seus interlocutores (e os espectadores) com os seus preconceitos profundos.

Aqui, essa confrontação adere a um ténue esquema narrativo que justifique a passagem ao grande écrã e sem a qual "Borat..." não passaria de um banalíssimo programa de TV: enviado aos EUA para aprender a cultura americana a fim de ajudar à modernização do Cazaquistão, Borat tem a epifania da sua vida e decide-se a viajar para a Califórnia para desposar Pamela Anderson. A necessidade de emprestar um esqueleto aos "sketches" introduz, paradoxalmente, uma peculiar abordagem cinematográfica na "televisualidade" do formato de "apanhados", ao adoptar e distorcer fórmulas tradicionais do cinema narrativo hollywoodiano: "Borat..." é, no fundo, um tradicionalíssimo "road movie" onde um homem aprende coisas sobre o mundo e sobre si próprio - apelando aos piores instintos de cada um de nós. Reside, aliás, aí a chave de "Borat..." enquanto exercício radical de humor confrontacional: o que Sacha Baron Cohen faz é obrigar primeiro os interlocutores que "apanha" em flagrante delito e os espectadores que "apanha" em flagrante deleite a enfrentarem os limites dessa pecha contemporânea a que se chama "politicamente correcto". Nada, mas nada, em "Borat..." é politicamente correcto; o mais espantoso é que muito do mais politicamente incorrecto que aqui se vê venha não da personagem mas sim dos incautos que são apanhados na teia de Borat, a quem a personagem incentiva inesperadamente a revelar a sua natureza humana - e, por arrastamento, dos espectadores, levados a uma gargalhada com tanto de sincero como de desconfortável. Porque Baron Cohen está a fazer humor com coisas sérias (como o melhor humor deve ser feito) de uma maneira que o coloca não só a ele em risco (até fisicamente, com uma coragem quase inconsciente) mas também a quem participa ou quem assiste: é como fazer uma montanha russa de olhos vendados.

híbrido.

Isso, aliás, sublinha uma outra e estonteante característica de "Borat...": é a história de um inocente atirado aos lobos da cidade, de um "selvagem" não necessariamente "bom" mas proveniente de um local "atrasado", logo nada preparado para o confronto com uma civilização mais "avançada". Uma mistura entre o Selvagem do "Admirável Mundo Novo" de Aldous Huxley e Jon Voight no "Cowboy da Meia-Noite" de John Schlesinger, relegado às margens e condenado a prostituir-se para sobreviver (e a citação é apenas sublinhada pelo uso de "Everybody"s Talkin"", a canção de Fred Neil que se tornou no "ex-libris" do filme). E, tal como nos filmes de Capra, este é um "inocente" que desmonta as falácias de um país que parece profundamente distante das suas raízes fundadoras de tolerância fraterna (não é inocente que a estreia americana de "Borat..." tenha ocorrido à beira das eleições intercalares que devolveram o controlo das instâncias governativas americanas aos democratas). Falta só apontar a filiação no burlesco clássico destes "apanhados", com Sacha Baron Cohen a literalmente pegar nas suas coordenadas e transplantá-los para o mundo real: ou seja, "contaminando" a realidade com uma linguagem herdada do cinema, para melhor revelar o absurdo, o burlesco que existem verdadeiramente por trás da fachada civilizacional.

Não deixa de ser peculiar - quase até irónico - que coexistam essas dimensões cinematográfica e televisiva, marcando o filme como um híbrido onde um século de diferentes formas de comédia entra em colisão com as convenções que nos habituámos a ver no género: muito do que se vê no filme seria demasiado transgressivo para a televisão contemporânea, e contudo nunca se consegue impôr a cem por cento como cinema. É como se o cinema funcionasse aqui como uma "última fronteira" libertária onde ainda há margem de manobra para explorar avenidas interditas à televisão, como se este confronto com o que há de pior para nós fosse demasiado radical e cruel para surgir na televisão. Mas é mesmo aí que "Borat..." se ganha: o espelho distorcido que Sacha Baron Cohen nos reenvia é um retrato em permanente desconforto do mundo em que vivemos, onde os "apanhados" não são apenas aqueles com quem Borat se cruza numa América investigada para lá do lugar comum mas também os espectadores que embarcam na aventura e se perguntam exactamente o que é isto. É verdade que nos rimos: mas, como dizia Juca Chaves a propósito da hiena, rimo-nos de quê?

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