Sim, estamos a falar de "animação digital", feita por computador e não à mão. Mas a Aardman não era o estúdio da plasticina, de "Creature Comforts" e "A Fuga das Galinhas" e "Wallace e Gromit"? É que "Por Água Abaixo" marca a primeira investida do estúdio na animação desenhada, embora mantenha intactas as suas marcas registadas: o ar plástico das personagens e a "inglesice" assanhada - que, aqui, os vê criar uma réplica perfeita de Londres... no sistema de esgotos da capital inglesa.
É a essa Londres subterrânea que vai parar Roddy St. James, ratinho de estimação habituado ao luxo de Kensington onde sempre viveu, depois de um "intruso" dos esgotos o desalojar do seu conforto. Procurando regressar à boa vida com a ajuda da desempoeirada Rita, desenrascada ratazana capitã de uma traineira, Roddy dá por si nas garras do tenebroso Sapo, rei do sub-submundo desta Londres feita de embalagens descartadas e senhor de um plano diabólico para a transformar no Grande Reino dos Anfíbios.
Dito assim, a coisa não parece estimulante. Ainda por cima, apesar de tecnicamente ser uma boa entrada do estúdio pela animação "tradicional", percebe-se uma certa cedência aos parceiros americanos da Dreamworks, consubstanciada na trama mais genérica - apesar do filme ter sido entregue a animadores do estúdio e do guião ter a "mãozinha" da dupla Dick Clement e Ian La Frenais, veteranos da comédia inglesa, a verdade é que os cartazes dizem "dos criadores de "Shrek" e "Madagáscar"" e não "dos criadores de "A Fuga das Galinhas" e "Wallace & Gromit""...
Mas é aí que a magia da Aardman vem ao de cima: insuflar personalidade, originalidade, humor e inteligência, subverter com graça os lugares-comuns, com fervilhante inventividade que transforma cada cliché em algo de fresco. Sim, "Por Água Abaixo" recicla as histórias-base de toda a animação desde os tempos de Walt Disney: é a entrada na idade adulta (Roddy forçado a sair do seu casulo isolado e estéril e a descobrir o rato que há em si), é o solitário em busca da família. Mas é-o de maneira deliciosamente inventiva, atirando-o para um espelho do mundo real construído à sua medida, polvilhado com os pequenos toques criativos e o humor seco e criativo a que a Aardman nos habituou: o vilão francês La Rã com os seus acólitos ninja que tocam acordeão mais o mimo ao telemóvel, o Sapo megalómano com a sua colecção de bric-à-brac monárquico, a fixação da avó de Rita em Tom Jones. Tudo culminando nas fantásticas lesmas cantoras que pontuam o filme com aparições sempre extraordinárias e que podiam ser como os pinguins conspiradores de "Madagáscar" - só que, dessa fita, só nos lembramos mesmo dos pinguins, enquanto "Por Água Abaixo" traz muito mais para ferrarmos o dente.
Que é como quem diz: mesmo não chegando ao nível dos Wallaces e de "A Fuga das Galinhas", "Por Água Abaixo" - uma das comédias mais divertidas que vamos ver todo este ano - confirma que, depois da Pixar, a Aardman é o outro grande estúdio de animação a trabalhar hoje em dia.