AS RELAÇÕES PERIGOSAS DE ALEXANDER LITVINENKO

Oex-agente secreto russo que travou e perdeu, num hospital londrino, uma furiosa batalha pela sobrevivência julgava-se a salvo no Reino Unido, onde residia desde 2001 como exilado político. Alexander Litvinenko, 43 anos, foi "deliberadamente envenenado", avaliou a unidade antiterrorismo da Scotland Yard - "numa tentativa de assassínio encomendada pelo Kremlin", acusam amigos e familiares. Os médicos passaram vários dias a tentar apurar qual foi a substância que, de dia para dia, deteriorou o seu estado de saúde. Ontem, encontraram doses significativas de polónio-210, uma substância altamente radioactiva.No mesmo dia em que surgiram os primeiros sintomas (vómitos, dores acentuadas no peito), o antigo espião, persistente crítico do Presidente russo, Vladimir Putin, desvalorizara as ameaças que estavam a ser feitas contra a sua vida. "Não são credíveis, não há razão para preocupações", afirmara então a um seu contacto, Mario Scaramella, perito italiano em questões de segurança com vastos conhecimentos no meio da espionagem.
Scaramella estava a ajudar o ex-tenente coronel dos Serviços de Segurança Federais russo (FSB), agência que sucedeu ao KGB nos assuntos internos, a investigar a morte da jornalista russa Anna Politkovskaia, outra feroz crítica de Putin, alvejada a tiro a 7 de Outubro em Moscovo.
Desde aquele encontro, um almoço partilhado com Scaramella a 1 de Outubro num restaurante de sushi de Piccadilly Circus, o dissidente russo foi adoecendo gradualmente, tornando-se cada vez mais claro que não padecia de simples problemas intestinais, como inicialmente lhe fora diagnosticado. Nas fotografias reveladas na passada segunda-feira por amigos e familiares, Litvinenko aparece profundamente desgastado.
"Um fantasma", descreveu o toxicólogo britânico John Henry, contratado pela família do antigo espião como consultor da equipa médica que o seguia no University College Hospital. "Perdeu o cabelo todo, muito peso por não comer nada há 18 dias, tem dificuldades em falar e em respirar e o olhar perdido, cansado, vazio."
Nesse dia foi levado para os cuidados intensivos, com a contagem de glóbulos brancos a zero e desde então sucederam-se debilidades: falhas no funcionamento da medula óssea, insuficiência renal, sistema imunitário degradado e, na noite de quarta para quinta-feira, baixa acentuada da pressão arterial seguida de paragem cardíaca, da qual foi reanimado sem sequelas danosas para o coração.

Quebra-cabeças clínicoOs sintomas confundem ainda os médicos, já depois de ter sido dado como "improvável" o uso de sulfato de tálio, um metal pesado extremamente letal (menos de um grama é suficiente para matar um adulto) que era preferencialmente usado pelo KGB. Também a hipótese de ingestão de uma substância radioactiva chegou a receber a mesma avaliação clínica - o ritmo de degeneração celular apresentado por Litvinenko era rápido demais para ser consistente com as doses de radioactividade a que seria plausível o ex-espião ser exposto sem se aperceber.
O médico Amit Nathwani, do University College Hospital, confessou, frustrado, na terça-feira, "ser possível nunca vir a saber-se" qual o veneno que foi utilizado e como foi administrado a Litvinenko, antigo atleta de pentatlo que corria oito quilómetros todos os dias.
Tanto mistério alicerça para os amigos e familiares de Litvinenko a teoria de responsabilização dos serviços secretos russos - só estes "detêm um tal grau de sofisticação", argumentou Alex Goldfarb. A mesma linha de pensamento é partilhada por Scaramella: "Sabemos muito bem quem são os inimigos de Litvinenko, face ao trabalho por ele desenvolvido durante anos para expor as ligações existentes entre a máfia russa e alguns membros de topo do Governo russo. A qualidade das investigações de Litvinenko tornou-o num grande perigo para eles", explicou o perito italiano.
Tal ideia foi firmemente rejeitada como "absurda" ao longo da semana pelo Kremlin, pelo FSB e pelos serviços russos de espionagem externa (SVR).

A pista "Vladimir"A Scotland Yard não está a ter maior êxito, tendo o porta-voz da unidade terrorista da polícia britânica precisado, na quinta-feira, que não foram ainda obtidos "desenvolvimentos significativos" e que continuam a tentar encontrar "algumas pessoas" para as interrogar.
O foco das atenções está naqueles com quem Litvinenko se encontrou no dia em que adoeceu - não tanto o italiano Scaramella, mas antes dois russos com que o antigo espião tomou chá num hotel londrino na manhã de 1 de Outubro. Sobretudo um misterioso "Vladimir", que recusara identificar-se a Litvinenko mas acompanhava um amigo seu, Andrei Lougovoi, também antigo agente do KGB e do FSB que, na década de 1990, trabalhou para o oligarca russo Boris Berezovski (ver caixa) e actualmente vive em Moscovo, onde tem uma agência de seguranças.
Foi aliás sob o "protectorado" daquele magnata que enriqueceu depois da queda da União Soviética e que fazia parte da "família" do antigo Presidente russo Boris Ieltsin, que Litvinenko ficou célebre, em 1998, ao fazer uma revelação bombástica. Acusou a unidade a que pertencia, os controversos Serviços de Vigilância e Acção contra a Criminalidade Organizada (amiúde designados como "esquadrão da morte" do FSB), de ter um plano para eliminar Berezovski, então secretário do Conselho de Segurança da Rússia, que vive hoje exilado no Reino Unido.
A façanha valeu de imediato a Litvinenko nove meses passados num centro de detenção especial do FSB e, já em 2002, num julgamento à revelia, uma sentença de pena suspensa por três anos e meio pelo crime de abuso de funções.
Desde que fugiu da Rússia, Litvinenko chamou constantemente a atenção sobre si mesmo, fazendo todo o tipo de "revelações" sobre os serviços secretos russos - algumas "fantasistas", na avaliação do perito russo em espionagem Andrei Soldatov, entrevistado na quinta-feira pelo Courrier International. Um dos focos de atracção letal está num livro que o antigo agente co-escreveu, em 2002, intitulado Blowing up Russia: Terror from Within, no qual afirma que agentes do FSB coordenaram uma série de ataques bombistas em blocos de apartamentos, na Rússia, em que morreram mais de 300 pessoas em 1999. A versão oficial do Kremlin sempre apontou a responsabilidade daqueles atentados a rebeldes tchetchenos - usando-os aliás como pretexto para desencadear a segunda ofensiva russa na Tchetchénia naquele mesmo ano.
Soldatov não acredita na teoria conspirativa de que os serviços secretos russos receberam "ordem para matar" o dissidente. "É o FSB capaz de envenenar Litvinenko? Sim. Já recorreu a esta prática? Sim. Mas não creio que sejam tão ingénuos, até mesmo inconscientes, para o repetirem na Grã-Bretanha." Aquele perito abre o leque de suspeitos até a figuras cúmplices do antigo agente secreto, que teriam algo a ganhar com o misterioso envenenamento: "Os círculos de Berezovski ou de outros oligarcas [russos] no exílio, que assim podem apresentar ao mundo um Putin que envia assassinos até aos quatro cantos da Europa para matar os seus opositores."

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