"Juventude em Marcha" é o terceiro filme que Costa foi rodar ao bairro, e com gente do bairro, depois de "Ossos" (1997) e "No Quarto da Vanda" (2000). Apesar das aparências, e apesar do que os une, são três filmes diferentes. "Ossos", integrando a "impureza" conciliatória da presença de actores profissionais com actores amadores recrutados no bairro, era um projecto cinematográfico "convencional": havia uma narrativa, uma espécie de "contracampo" a "Casa de Lava" (que, em 1994, fora o filme anterior de Costa), e essa narrativa, esse "argumento", utilizava o bairro e os seus habitantes, servia-se deles para se desenvolver, mesmo se nesse processo (a "teoria do vitral") a luz com que o cinema de Costa os atravessava (ao bairro e às pessoas) lhes dava um recorte "sobrenatural", atribuindo-lhes qualidades (mitológicas, pictóricas) que nem por sombra os reduziam, bem pelo contrário. Mas havia ainda "demasiado cinema" (coisa que até "No Quarto da Vanda" Pedro Costa foi tendo tendência para dizer, sempre, do filme anterior, quase os renegando), e o reconhecimento de que a luz e voz não eram deles (do bairro, e das pessoas).
"Ossos" não era o filme "deles" - e Costa procurou reparar isso oferecendo-lhes "No Quarto da Vanda". Verdadeiro "filme do bairro", espantoso retrato de grupo de uma comunidade ameaçada de extinção, filme-colmeia que sob a égide de Vanda e do seu centro de comando (o quarto) se multiplicava em fios e compartimentos, em descrições de rituais e em "racconti", convocando inúmeras personagens e respectivas vidas e histórias, sempre na tensão entre a doçura e generosidade do olhar de Costa e a perversidade do seu papel de cineasta-organizador (teoricamente) na sombra. Se bem se lembram, é o mais impressionante filme dos últimos, para aí, vinte anos.
Temos visto alguma tentação de descrever "Juventude em Marcha" como uma sequela desse filme, um "No Quarto da Vanda II", agora com Ventura (o pai de Vanda Duarte) em mestre de cerimónias. Nada mais errado. "Juventude em Marcha" é outra coisa, outro filme. Mantém-se o Monument Valley e, embora os actores (fora Vanda) sejam outros, uma impressão de "troupe" que também começa a ser fordiana. Diferente porquê, então? Por um lado, porque o bairro já praticamente não existe, e as pessoas que estavam juntas em "No Quarto da Vanda" estão agora separadas umas das outras. Foram realojadas em prédios de habitação social, num bairro novo (onde Ventura se perde) imaculada e indistintamente branco.
E se Vanda vive agora (em retrato ambiguíssimo) num apartamento nesses prédios, passando os dias a ver televisão, Ventura está renitente à mudança (a casa nova "está cheia de aranhas"). Visual e espacialmente, é o grande confronto do filme - o bairro novo e o bairro velho, traduzido numa questão de luz, uma luz violentadora que rasga a penumbra e, mais do que tudo, desaloja essa criatura da sombra que é Ventura (que no entanto "resiste", uma resistência sonâmbula de quem sabe que acabará num apartamento branco). Perdido no espaço, e esta é a narrativa do filme, dedica-se a uma espécie de percurso interior: as memórias da mulher (uma carta que fala "duma casinha de lava"), da terra natal (a abordagem da "diáspora" cabo-verdiana é uma presença forte, genialmente evocada numa sequência com um célebre quadro de Rubens), e o espicaçar do instinto paternal (como um bom pai, quer juntar os filhos, mesmo sem saber exactamente quantos tem ou já deixou de ter).
Mas diferente, sobretudo, porque se diria que Costa voltou a não ter medo de fazer "demasiado cinema", e até o procurou. Há muito que a propósito dum filme dele não parecia tão pertinente o rol de cineastas (Ozu, Straub, Tourneur, Hawks, Murnau) que críticos do mundo inteiro têm evocado a respeito deste (pensámos em Ford numa procura de alguma originalidade).
Provavelmente desde "O Sangue" que não se via, num filme de Costa, esta exuberância plástica, tanto em termos de pura composição como enquanto "material" alusivo e envolvente da narrativa e da personagens - e quando tudo isso se encontra ao mesmo tempo, como na sequência com o Rubens na Gulbekian (verdadeira enxurrada de cor, irrupção dum vermelho carregadíssimo num filme que até aí fora quase a preto e branco), o espectador fica sem respiração. Por isso, pela questão da paternidade (que espelha a orfandade presente no "Sangue"), pela dimensão mitológica, "bíblica" díriamos por alguma razão (até porque o que Ventura nos lembra mesmo é John Wayne nos "Três Padrinhos" de Ford), ficamos com a ideia de que "Juventude em Marcha", na obra de Pedro Costa, é o filme que mais volta ao princípio. E, que, numa obra feita de filmes que se vieram sucessivamente opôr aos precedentes, é o laço que os une a todos. Um fim e um princípio ao mesmo tempo, por assim dizer.