A via sacra

Duas horas para percorrer 16 quarteirões, que é como quem diz, ir do Saldanha aos Restauradores de carro - nem em dia de engarrafamento ou manifestação leva assim tanto tempo.

Esses 16 quarteirões, contudo, são também estações de uma via sacra que Jack Mosley se decide a cumprir para atenuar a solidão, a bebida, o lento resvalar para a decadência que fez dele uma anedota que precisa do álcool para se aguentar mais uma hora de pé. Uma via sacra que enceta quando percebe que o prisioneiro que tem de entregar no tribunal, um ladrãozeco supersticioso que é incapaz de ficar calado um segundo, é uma testemunha incómoda cujo depoimento irá incriminar um colega corrupto e que, por isso, tem de ser eliminada pelos seus próprios camaradas de esquadra. Para Mosley, é a sua hipótese de redenção que lhe cai nos braços, a oportunidade de reerguer-se dos abismos para onde se deixou cair, de provar que ainda há um homem capaz de "do the right thing" dentro do detective alcoólico, cansado e barrigudo que fecha os olhos vezes demais. Desta vez, Mosley decide mantê-los abertos - nem que seja a última coisa que faz.

Mas o que se passa com os heróis americanos? Há poucas semanas, o sargento Ben Randall de Kevin Costner em "O Guardião" transportava consigo o dilema existencial sobre como envelhecer numa profissão em que se vive sempre no presente. Agora, o detective Jack Mosley decide tentar redimir abnegadamente os erros que cometeu ao longo da sua vida - é interpretado por um Bruce Willis precocemente envelhecido, coxo, com uma barriga de cerveja, daqueles solitários lacónicos, cansados da vida, que já viram demasiado. Quem se lembrar de "O Comboio Apitou Três Vezes" (1952, Fred Zinnemann) e do xerife íntegro que não hesita em pôr o dever à frente não estará errado; aqueles (provavelmente menos) que irão buscar uma fita menos recordada de Clint Eastwood, "Barreira de Fogo" (1977), também não andarão longe. E dizer que "16 Blocks" podia ser uma das séries B 70s do grande Don Siegel está, provavelmente, mais próximo ainda: seguindo as unidades aristotélicas de tempo, espaço e acção, o filme de Richard Donner ("habitué" dos veículos de acção como a série dos "Arma Mortífera", assinando aqui provavelmente o seu melhor filme) é seco, compacto, tenso, económico. Tudo se passa quase em tempo real, entre apenas três personagens - e é injusto falar de Willis e esquecer o "rapper" Mos Def, que defende com garra o papel ingrato da testemunha, e o grande David Morse, um dos mais injustiçados e talentosos secundários americanos, capaz de injectar no vilão de serviço a humanidade necessária para não cair na bidimensionalidade. Noutros tempos, poderia ter sido um "western" de segunda linha pensado em complemento de sessão dupla - reconheça-se-lhe mais eficácia do que originalidade, mas mesmo isso, nestes dias em que o orçamento parece ser posto acima da história e das personagens, faz figura de raridade. Tem a inteligência suficiente para ser um filme construído à volta das suas personagens, mais do que à volta dos tiroteios, e isso, mais a tal secura e economia, mais o dilema moral que reside no seu centro, tornam-no num dos mais interessantes policiais americanos dos últimos anos.

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