Estreia-se hoje a pérola das séries sobre a "medicina das trincheiras"
Médicos João Lobo Antunes e Luís Campos falam das diferenças e semelhanças entre a ficção e a realidade nas urgências hospitalares
Anatomia de Grey, a última ficção sobre a "medicina das trincheiras", a urgência hospitalar, ganha hoje lugar na RTP1 às 23h. Depois de Serviço de Urgência, ou do enigmático Doutor House, esta é, entre as séries mais recentes sobre médicos, a que faltava na televisão de sinal aberto em Portugal. De que modo é que a ficção mais premiada dos últimos tempos é fiel à realidade dos hospitais? O neurologista João Lobo Antunes e o internista Luís Campos, médicos e espectadores, explicam.Meredith Grey, filha de uma cirurgiã conceituada, e os seus colegas internos iniciam hoje os sete anos de internato nas urgências do hospital de Washington onde se desenrola uma história cheia de emoção, drama e, claro, muito romance. Como lidar com a morte, com o fracasso, com a dúvida perante a doença e com a fragilidade humana ao mesmo tempo que a vida corre é o principal eixo de sedução da série premiada com um Emmy logo no seu primeiro ano, em 2005, e que reúne à volta da televisão cerca de 38 milhões de norte-americanos, estando permanentemente no topo da lista dos programas mais vistos nos EUA.
A par de Anatomia de Grey na ABC, os outros canais norte-americanos continuam a explorar este filão de séries sobre médicos, com a veterana Serviço de Urgência, na NBC, e House, na Fox, E a CBS estreou ontem mesmo uma nova série sobre hospitais: 3 Lbs. Tudo começou, recorde-se, com Dr. Kildare, que foi para o ar, pela primeira vez, em 1961.
"É uma série que exerce um grande efeito de sedução", diz Helena Torres, a responsável pelo departamento de programas estrangeiros da RTP, sobre Anatomia de Grey. Esta é, sublinha, uma aposta ganha da RTP, que já tem os direitos de transmissão da segunda temporada assegurados e espera que os direitos da terceira temporada para a Europa sejam libertados para também os garantir. O primeiro e segundo episódios passam hoje e sábado. Depois a série vai instalar-se no domingo ao final da tarde, antes do Telejornal. "O público da RTP não vê com facilidade a ficção em horário muito tardio", diz Helena Torres.
Quem não esperou pela RTP para ver Anatomia de Grey foi o neurologista João Lobo Antunes que já tem em casa a série em DVD: "Tenho em casa a série. Acho que é muito mais romanceada, mas reflecte um pouco a vida muito difícil dos jovens internos que eu conheci bem."
"Doctor John Antunes..."Mas foi com Serviço de Urgência que Lobo Antunes voltou a ser "o cavaleiro corajoso, forte, romântico, indomável", que julgava ser quando ouviu a primeira vez o seu nome chamado na urgência do Instituto Neurológico de Nova Iorque, que servia metade do Harlem e onde era comum ter de remediar os danos neurológicos das armas de fogo e dos tacos de basebol: "Doctor John Antunes, stat..." Foi há 30 anos, como descreve num ensaio dedicado à série no seu livro Numa cidade Feliz (Gradiva).
"Muitos anos depois voltei ao serviço de urgência agora como espectador fiel de uma série de televisão. O apelo imediato de ER é simples de explicar: é que a hábil dramatização de Michael Crichton, clínico praticante antes de se tornar escritor de sucesso, conseguiu preservar a realidade daquela medicina única que é a medicina de urgência. Esta é a medicina da probabilidade ou da certeza precária", descreve Lobo Antunes, para quem o Serviço de Urgência é "um documentário realista e pedagógico da última medicina das trincheiras."
Luís Campos é especialista em medicina interna e foi, durante os últimos três anos, director do serviço de urgência do Hospital de São Francisco Xavier, em Lisboa. Para o médico que sempre fez urgências, as séries de ficção que retratam o mais vibrante dos ambientes hospitalares, como Anatomia de Grey ou Serviço de Urgência, têm a vantagem de aproximar as pessoas do que é a prática médica e os problemas com que o médico se defronta: "Humanizam a figura do médico e aumentam a compreensão do doente. A medicina não é uma ciência exacta. Há sempre uma margem de dúvida que o médico tem."
Mas há desvantagens. "O grande inconveniente é que transmitem uma ideia de maior capacidade da medicina do que ela tem", diz o especialista. Refere que há estudos científicos, por exemplo, que analisam o irrealismo das reanimações cardíacas em séries deste tipo: "Mais de 70 por cento das pessoas na ficção são reanimadas com sucesso quando não se consegue reanimar na realidade nem um terço. E a maior parte dos reanimados são jovens, de causa traumática, quando o que nos chega são pessoas velhas com doença cardíaca."
Luís Campos, que exerce desde 1978 e que fez sempre urgência ao longo da carreira, reconhece contudo rigor no traçar do perfil do médico de urgência nas séries televisivas. "Os dilemas morais, os conflitos que os médicos têm de enfrentar e a forma como encontram compensação e solidariedade no espírito de equipa têm uma dimensão correcta", diz sobre a ficção espelhada de uma realidade que é a mais desgastante de todas as actividades médicas.