KEITH JARRETT UM MÚSICO ENORME
O Centro Cultural de Belém acolhe hoje um dos acontecimentos musicais do ano:
o regresso a Portugal, 25 anos depois da última apresentação em Lisboa, do pianista Keith Jarrett com o seu trio (com Gary Peacock, no contrabaixo, e Jack Dejohnette,
na bateria). Um concerto aqui apresentado por um pianista português, que se afirma um devedor do legado do grande músico norte-americano.
Quando decidi dedicar-me seriamente à música, foi com os discos de Keith Jarrett que comecei a minha formação - o que me recorda o que me disse certo dia o Luís Villas Boas: "Eh pá, você começou pelo fim!". Mas, se há músico que eu posso dizer que me influenciou profundamente, é Keith Jarrett. E a verdade é que aquilo que me levou a querer estudar jazz (tal era o nível de ingenuidade!) foi saber que ele tinha começado por aí.Ao longo do tempo, fui conhecendo muitos outros pianistas e aprofundando o meu conhecimento da música e do trajecto musical de Keith Jarrett. Nenhum outro músico me pareceu ter um universo tão extenso e surpreendente como ele. Este é, aliás, um dos factores que diferenciam Keith Jarrett da maior parte dos pianistas. Criou um estilo absolutamente único, com uma sonoridade e uma linguagem que têm uma identidade fortíssima, e levou todas as formações com que tocou - do solo absoluto ao clássico trio, do quarteto aos grupos mais alargados (nos anos 1970) - a uma transcendência que permanece, hoje, uma das causas da sua universalidade.
Não é vulgar na história da música ouvirmos a totalidade da obra de um compositor (neste caso também improvisador) e acharmos que toda ela é espantosamente actual. Isso é um dos pontos que ele tem em comum - para alguns, a comparação será uma heresia - com Bach.
Mesmo quando os formatos não são inovadores, ele eleva-os a patamares tão extraordinários que, nas suas mãos, se tornam intemporais. Isso passa-se com discos a solo com composições como Facing You e Staircase, e outros que partem de pequenos motes ou de improviso absoluto como o Kölnconcert, Bremen-Lausanne, Sun Bear Concerts e, mais recentemente, Radiance e The Carnegie Hall Concert (entre tantos outros); ou com os discos dos seus quartetos americano e europeu, ou o seu trio de longa data com Gary Peacock e Jack Dejohnette (com que hoje se apresenta no CCB). Sempre, mas sempre, o nível da sua música - harmónica, melódica e ritmicamente - é absolutamente esmagador. Um caso paradigmático é o dos seus dois quartetos, que, a dada altura, ele trabalha em simultâneo. O modo como potencia as características dos músicos que os compõem é de uma inteligência musical única, e faz deles dois dos mais brilhantes (e curiosamente diferentes) quartetos da história do jazz moderno.
Já relacionei Jarrett com Bach, mas gostava de mencionar mais uma característica que os aproxima. A polifonia. Ninguém improvisa a várias vozes como Keith Jarrett. E isto é particularmente fascinante num universo como o do jazz, em que o mais comum é ouvirmos uma melodia na mão direita acompanhada por acordes na mão esquerda. Ele não só faz isto de uma forma brilhante, como dá, inúmeras vezes, sequência melódica às notas que compõem o acorde; ou, ainda mais surpreendente, improvisa a várias vozes sem uma hierarquia entre elas.
Fazer assim polifonia não é só dificílimo. É sinónimo de um génio raro.
Keith Jarrett não é um músico que facilite, e o seu famoso nível de exigência com o público não é maior do aquele que tem consigo próprio.
Cada vez que ele sobe a um palco nunca veremos uma atitude de displicência. Isso é, para mim, um factor, mais um, de enorme respeito.
De qualquer maneira, para que não restem dúvidas, hoje vou assistir a um concerto de quem considero ser um dos maiores músicos de todos os tempos. Quantas vezes me poderei gabar disso?