A MÃO ESQUERDA AO PIANO, UMA HISTÓRIA DE RESISTÊNCIA

O normal é tocar piano com duas mãos. Mas há quem não desista mesmo só com uma. Ravel
e Prokofiev fizeram obras para homens como o pianista Leon Fleisher. Por Isabel Salema

Cinco dedos, uma mão, ao piano. O pianista norte-americano Leon Fleisher confrontou-se 35 anos com a possibilidade de tocar apenas com a mão esquerda. Não desistiu, continuou a tocar piano e não, não se trata de uma espécie de actividade de circo, porque agora, que já consegue usar as duas mãos, continua a explorar os concertos que foram escritos para pianistas que só podem tocar com a mão esquerda. Fleisher, 78 anos, esteve no ano passado na Gulbenkian, a tocar o Concerto para a Mão Esquerda de Ravel, e vai estar hoje e amanhã no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, e no Palácio de Queluz, a interpretar o Concerto para piano n.º 4, para a mão esquerda, de Prokofiev. Com as duas mãos, vai tocar o Concerto para piano, de Mozart. Duas Mãos é precisamente o nome da gravação que fez para a Vanguard Classics em 2004 e que evoca também a sua história desde que dois dedos da sua mão direita ficaram imobilizados em 1965.
Leon Fleisher, que acabou de tocar no Carnegie Hall, em Nova Iorque, diz que não há qualidades específicas num pianista que toca só com a mão esquerda. "É a mesma coisa, uma ou duas mãos. Música é música." Só há uma diferença: o sítio onde o pianista se senta. "Se nos sentarmos normalmente não conseguimos alcançar as notas agudas, por isso temos que nos sentar um bocadinho mais acima no teclado. Quando tocamos só com uma mão também nos apoiamos um bocadinho mais na nádega direita, porque gastamos mais tempo na parte de cima no teclado."
Fisicamente, os dedos mais fracos da mão esquerda estão mais próximos das notas mais graves. Diferentes compositores exploraram coisas diferentes. Ravel, por exemplo, na obra que Fleisher interpretou no ano passado na Gulbenkian, quis que nada parecesse diferente se ouvíssemos o concerto com os olhos fechados: "Ele quis escrever uma peça que soasse para duas mãos, que não ouvíssemos que estavam apenas cinco dedos. Ele trata o piano como um instrumento que toca apenas uma linha [melódica]. Quando se toca um violino, um violoncelo ou uma flauta, eles tocam uma linha, não podem tocar muitas linhas em simultâneo. É assim que ele trata a mão esquerda, como um instrumento de orquestra, é mais o contraponto de uma orquestra."
No piano, quando usamos as duas mãos, explica Fleisher, "é possível tocar muitas notas ao mesmo tempo, há muito som vertical, que é como quem diz, um som harmónico".

O caso de Wittgenstein
Os concertos só para mão esquerda existem porque alguém os encomendou para pianistas que, como Fleisher, não podiam tocar com a mão direita. O próprio Fleisher fez aumentar o reportório. Um dos exemplos foi a encomenda que a Orquestra Sinfónica de Boston fez a Lukas Foss para escrever uma composição para a mão esquerda.
Antes de Leon Fleisher, houve o caso famoso do pianista austríaco Paul Wittgenstein, irmão do filósofo, que perdeu a mão esquerda na I Guerra Mundial. "Ele era de uma família muito rica e estava determinado a continuar a fazer música: pagou a uma dúzia de pessoas para escrever música para ele, Prokofiev, Britten, Strauss. Graça a Deus, porque alguma é da melhor música que temos."
Fleisher diz que nestes 35 anos que esteve sem tocar com as duas mãos - por causa da distonia focal da mão -, o que aprendeu não foi tanto uma lição de piano, mas uma lição de vida. A música era o mais importante. Fleisher tornou-se maestro e professor. "Comecei a orquestrar e isso mudou o meu ouvido. Todo o tecido de sons é diferente do que só com o piano. Tem-se todos os timbres. Os instrumentos são todos muito especiais e diferentes. Podem-se pôr juntos ou em equilíbrios diferentes. Eles enriquecem a nossa experiência." Quando voltou ao piano, "um instrumento maravilhoso que pode soar como uma orquestra", era inevitável que se tornasse mais consciente dos vários tipos de sons, "quer tocasse com uma mão ou sete".
Anteontem, durante o ensaio do concerto de Mozart, Gabriela Canavilhas, que convidou Fleisher a regressar a Lisboa, falou dessa peculiaridade. "Senti um pianista que bebeu na sua actividade de maestro e incorporou um ouvido harmónico. Através da mão esquerda, foi perfeitamente possível realizar todo o trabalho de maestro que fez desde que perdeu a mão direita. Era claramente não apenas um acompanhamento harmónico, muitas vezes atribuído à mão esquerda no século XVIII. O que ele transmitiu foi já uma concepção orquestral, de maestro. E a mão direita foi extraordinária", disse a presidente da Associação Música Educação e Cultura (AMEC), que gere a Orquestra Metropolitana de Lisboa
O pianista continua a tocar as obras para mão esquerda ao piano porque merecem ser ouvidas: "É música maravilhosa. Talvez também possa dar esperança a pessoas que têm problemas. Eu senti que a minha vida tinha acabado."

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