A difícil paixão de Saint Exupéry e Consuelo
Quando se comemoram os 60 anos da primeira edição de O Principezinho, a Teorema publica o livro Antoine de Saint Exupéry e Consuelo, Um Amor Lendário do biógrafo Alain Vircondelet que reúne uma série de cartas, desenhos, fotografias, aguarelas, manuscritos e poemas encontrados em malas de Consuelo de Saint Exupéry e que até agora
nunca tinham sido abertas. Chegará às livrarias portuguesas a 9 de Novembro.
"Chamava por ela ao longo de todas as cartas que escrevia à família e, sem ele saber, essa mulher estava a chegar junto dele. Chamava-se Consuelo Suncin Sandoval e enviuvara em 1927 de Gomez Carrillo, escritor guatemalteco naturalizado argentino e cônsul da Argentina. Consuelo casara um ano antes com esse escritor prolixo, autor de várias dezenas de obras - entre as quais se contava uma retumbante biografia de Mata-Hari -, e deslocava-se à Argentina para resolver assuntos da herança. [Consuelo] Obtivera uma bolsa de estudos nos Estados Unidos e instalara-se aos dezanove anos em San Francisco. Teria sido ali que casara com o primeiro marido, Ricardo Cardenas, do qual nunca ninguém saberá se era um jovem oficial mexicano ou um simples empregado de escritório. Cardenas morrera dois anos depois, numa revolução popular ou num acidente.
(...)
Em 1925, Consuelo instalou-se em Paris. Tinha vinte e quatro anos. A sua beleza, o seu talento de cantora e o seu encanto exerceram imediatamente influência na Paris das artes e das letras.
(...)
Durante a longa viagem que a conduziu a Buenos Aires, Consuelo conheceu Benjamin Crémieux, tradutor de italiano para a Gallimard e leitor nessa mesma casa, e o talentoso pianista Ricardo Viñes. Ambos ficaram inevitavelmente encantados. Crémieux, que ia a Buenos Aires para dar um ciclo de conferências na Alliance Française, convidou-a a assistir à primeira e a participar na recepção que se lhe seguiria. Consuelo prometeu ir, apesar de uma agenda muito carregada: o próprio presidente da República argentina, amigo de Carrillo, fazia questão de recebê-la com todas as honras.
Durante a viagem, Crémieux falou de Saint Exupéry, o piloto-escritor de Courrier Sud, já conhecido nos meios literários, e gabou-lhe o talento e a gentileza.
Consuelo, intrigada, mostrou desejo de conhecê-lo. Pois decerto:
- Apresentar-lho-ei na recepção da Alliance Française...
Consuelo, sempre fascinada pelos escritores, estava já impaciente por conhecer aquele que Paris descobrira havia pouco e que a todos divertia e desconcertava com a sua ingénua extravagância e originalidade.
(...)
Consuelo cumpriu a promessa e apareceu - talvez secretamente atraída por Saint Exupéry, que também prometera lá ir. À entrada para a recepção, não o viu; aborreceu-se um pouco e decidiu sair. Pediu o casaco no vestiário, mas um homem alto barrou-lhe o caminho. Temos de dar agora a palavra a Consuelo, que mais tarde recordou esse encontro nas Mémoires com a liberdade de tom e a fantasia que a caracterizavam:
"O homem moreno - conta ela - era tão alto que eu tive de levantar os olhos ao céu para o ver.
- Benjamin, você não me tinha dito que havia mulheres tão bonitas. Fico-lhe muito agradecido.
Depois, virando-se para mim:
- Não se vá embora; sente-se aqui, neste cadeirão.
E empurrou-me de tal forma que perdi o equilíbrio e dei comigo sentada.
Pediu-me desculpa, mas eu não podia protestar.
- Mas quem é você? - disse eu, por fim, tentando tocar com os pés no tapete, pois estava literalmente prisioneira naquela poltrona tão funda e tão alta.
- Perdão, perdão - retorquiu Crémieux - esqueci-me de os apresentar.
Antoine de Saint Exupéry, um piloto, um aviador, que lá de cima lhe fará ver toda a Buenos Aires, e também as estrelas. Porque ele gosta muito das estrelas.
Saint Exupéry aproveitou estas palavras para propor imediatamente um passeio de avião. O grupinho de amigos chegou, alegre, ao aeroporto depois de uma hora de estrada. Levantámos voo. Saint Exupéry fazia de guia, mostrando os relevos, os montes, o mar:
- Olhe, lá adiante... é o Rio de la Plata... Espero que não esteja enjoada.
- Um bocadinho.
- Tome este comprimido; deixe cá ver a língua...
Depositou-me o comprimido na boca -conta Consuelo - e, apertando-me nervosamente as mãos:
- Que mãozinhas tão pequenas! Mãos de criança! Dê-mas para sempre!
- Mas eu não quero ficar maneta!
- Ai que parva! Estou a pedir-lhe que case comigo. Gosto das suas mãos. Quero guardá-las só para mim.
- Mas ouça: você só me conhece há umas horas!
- Vai ver. Casará comigo..."
(...)
A família dele via com maus olhos aquela história de amor.
Consuelo era a "viúva alegre" que tinha como profissão ser egéria; ainda não a conheciam, mas ela era já a intrusa, a garce - como lhe chamaria Simone, uma das irmãs de Antoine - ou a "usurpadora"...
Saint Exupéry viu reaparecer lentamente à superfície todos os seus demónios, cobardias e inquietações. A influência da família era soberana: Antoine afastava-se de Consuelo, voltava com garrafas de espumante, conseguia o perdão e partia outra vez sem dar notícias.
Estava já a desenhar-se com precisão o entrecho da vida de ambos. Consuelo descobriu isso, assustada mas ainda cativa. Apesar de tudo, resolveram casar; mas, ao chegar ao registo civil, Saint Exupéry, lavado em lágrimas, recusou dizer "sim" porque a mãe não estava presente... Consuelo decidiu então deixá-lo.
Estava-se no começo de 1931.
(...)
Consuelo casou religiosamente com Saint Exupéry em Agay, a 23 de Abril de 1931. Nesse dia, a noiva vestia de preto. Ainda de luto por Carrillo, trazia um vestido de rendas, preto, e uma mantilha também preta. Levava na mão um ramo de cravos vermelhos.
Houve quem visse nisso um mau presságio. Outros, mais uma excentricidade..."