Amadeo de Souza-Cardoso O amigo de Brancusi
Até aqui desconhecidos, os postais que escrevia ao escultor romeno falam de pedras
e montanhas. O pintor que tinha "a cabeça em Paris e o coração em Manhufe"
quis até ao fim da vida regressar aos Estados Undios
Amadeo de Souza-Cardoso estava tão à vontade nos ateliers de Montparnasse à conversa com Modigliani como nas corridas a cavalo com Eduardo Viana nas montanhas dos arredores de Amarante. A avaliar pela correspondência que trocava com amigos e familiares, em qualquer um dos cenários o pintor podia sentir-se também incompleto: em Paris faziam-lhe falta as pessoas e os lugares ligados à Casa de Manhufe, em Portugal sentia saudades da agitação intelectual e da "velocidade" da capital francesa."É por isso que se costuma dizer que Amadeo tinha a cabeça em Paris e o coração em Manhufe", diz António Cardoso, director do Museu Amadeo de Souza-Cardoso, em Amarante, que ao longo dos últimos anos tem colaborado com a equipa de Helena de Freitas na preparação do catálogo raisonné do pintor, um dos maiores do século XX e na exposição que o Centro de Arte Moderna lhe vai dedicar.
A investigação dos últimos cinco anos, que envolveu Helena de Freitas, a sua adjunta, Catarina Alfaro, e a colaboração de Leonor Oliveira, exigiu um mergulho no espólio do pintor que nasceu em 1887 e durante toda a (curta) vida - morreu em 1918, aos 30 anos, com febre pneumónica - rejeitou o academismo e a ortodoxia de todos os movimentos que experimentou e reinterpretou, como o cubismo e o futurismo.
A grande novidade que resultou da pesquisa da vida e obra do pintor, que levou à localização de várias dezenas de pinturas e desenhos inéditos ou desaparecidos, é a sua amizade, já enunciada mas nunca comprovada, com o escultor romeno Constantin Brancusi (1876-1957), um dos nomes mais importantes da arte do século XX. É, aliás, com um retrato de Amadeo e uma escultura de Brancusi (Maiastra, 1911) que abre a exposição do CAM.
"Eis-me no país do sol e da tranquilidade das montanhas", escreve Amadeo na carta que enviou de Manhufe ao escultor que terá conhecido por volta de 1910 e de quem terá sido muito próximo, tal como foi do artista italiano Amedeo Modigliani (1884-1920), uma relação já conhecida e documentada. "Entre Modigliani, Amadeo e Brancusi há uma grande relação vivencial, uma grande intimidade", diz Catarina Alfaro, explicando que foram encontrados quatro postais e uma carta do pintor português para Brancusi, embora "infelizmente" não tenham conseguido ainda localizar correspondência do escultor para Amadeo nem fotos em que apareçam juntos.
No postal que Amadeo manda de uma praia em Biarritz fala de pedras, noutro, dos Pirinéus, de montanhas. "Amadeo escreve sempre sobre os elementos da própria natureza, evocando imagens muito plásticas. Não tem necessidade de lhe falar de outras coisas porque provavelmente estariam muitas vezes juntos."
Ligação à naturezaA ligação de Amadeo à natureza e à cultura popular são das principais marcas da sua obra e personalidade, defende António Cardoso. Os costumes, as filhoses, as bonecas de pano do Minho, as touradas, os alvos de feira, as violas e os moinhos sempre marcaram a sua vida, em especial em Manhufe, "centro da geografia afectiva e emocional de Amadeo".
Regressava sempre a casa, mesmo depois da ida para Paris, aos 19 anos, onde trocou a arquitectura pela pintura e o desenho e acabou por construir uma teia de contactos e amizades que o levariam mais tarde a exposições em Londres, Hamburgo, Munique, Boston, Chicago, Nova Iorque e Berlim - as duas últimas as mais importantes, em 1913 (a maioria das suas obras é feita a partir deste ano).
Só em 1916 Amadeo expõe pela primeira vez em Portugal, primeiro em Lisboa, depois no Porto. Os seus 114 trabalhos, vistos por mais de 30 mil pessoas, provocam escândalo e ele chega a ser agredido. "Ele tinha consciência de que a sua carreira não passava por Portugal e quis, até ao fim da vida, regressar a Paris e aos EUA", explica Catarina Alfaro. Para o director do museu de Amarante, a necessidade de viajar e o "sentido de pertença evidente" permitem estabelecer semelhanças entre Amadeo e Picasso, embora os seus percursos tenham sido "radicalmente opostos".
"É preciso não esquecer que Amadeo morre aos 30 anos", diz António Cardoso. "Estou convencido de que faria carreira como Picasso, sublinhando a sua condição de homem das montanhas como Picasso sublinhou a de malaguenho, de hispano. Só que Picasso teve tempo para se espraiar. Amadeo viveu pouco e ainda assim pode ver-se na sua pintura a importância dos valores da cultura portuguesa e, sobretudo, da memória e dos lugares."