A proposta de revitalização da Baixa pombalina
Por ter tido a responsabilidade de coordenar a candidatura da Baixa pombalina a Património Mundial, senti-me na obrigação de ler atentamente a tão publicitada Proposta de Revitalização da Baixa-Chiado. No entanto, como profissional especialista nestes temas e também como lisboeta, foi com crescente perplexidade que fui folheando as cerca de 150 páginas do dito documento.Para além de ignorar a denominação "Baixa pombalina" - que se tem procurado consolidar e justificar nos últimos anos através de simpósios, exposições e publicações -, a proposta começa por apresentar essencialmente cálculos simplificados de áreas brutas de construção, números de habitantes, de fogos, de números de camas e de unidades hoteleiras existentes e desejadas.
Fala-se depois de reservar uma quota de mercado habitacional para a classe média jovem e de dar resposta a várias situações problemáticas diferenciadas. Curiosamente, nestas situações problemáticas são incluídas as "famílias monoparentais", os "adultos jovens" e os "jovens e os adultos itinerantes".
Junta-se também uma nova frente ribeirinha transformada em parque temático para o qual será necessário criar todo um plano especial de pormenor. Escadas e tapetes rolantes permitirão o fluxo constante de clientes de um grande "centro comercial a céu aberto". "Um sítio dinâmico em movimento perpétuo", onde, não se sabe como, será simultaneamente possível "dormir com qualidade".
Mais adiante, relativamente às acções de reabilitação do edificado, refere-se que "a demolição de edifícios sem valor patrimonial (do século XIX ou posteriores) e a sua substituição por edifícios de arquitectura contemporânea poderá ser aceite desde que siga os princípios e regras do desenho do plano pombalino". Contraditoriamente, é afirmado de seguida "não manter fachadas que não são originais" e "não obrigar a um modelo neopombalino". Todas estas propostas são feitas sem a apresentação dos critérios a utilizar em todas essas eventuais acções de demolição. Para rematar, propõe-se a "uniformização" das fachadas da Praça da Figueira com revestimento de novos azulejos.
Relativamente ao modelo de gestão, é proposta a criação de um "leque" de três novas sociedades de gestão, para além de se manter a Sociedade de Reabilitação Urbana (SRU) Baixa Pombalina: uma sociedade gestora (SGPE) que terá participações em duas sociedades adicionais, a Sociedade Gestora de Projectos Estruturantes e a Sociedade de Gestão Urbana (SGU), que gerirá a actual Sociedade de Reabilitação Urbana Baixa Pombalina. Preconiza-se também a transferência do capital da actual SRU para a futura SGU, sem se explicar com que capital a actual SRU funcionará. Em todo este complexo modelo institucional, o Ippar é referido quase unicamente como um parceiro que será útil associar ao sistema de gestão de forma a agilizar o licenciamento dos projectos.
Poderia continuar aqui com o enunciado de outras situações que serviriam somente para aumentar a indignação com a leitura do referido documento. As apontadas servem, porém, para enunciar, de seguida, os factos que me parecem mais graves relativamente a esta proposta que foi apresentada para aprovação pela Câmara Municipal de Lisboa (CML). São eles:
1. Em nenhum ponto da dita Proposta de Revitalização é referida a existência do dossier de candidatura da Baixa pombalina à lista do Património Mundial. Esta omissão é gravemente lesiva dos interesses deste sítio histórico-monumental, se tiver sido feita deliberadamente ou, mais grave ainda, por simples desconhecimento da sua existência. O dossier de candidatura foi aprovado em 6 de Julho do ano passado por unanimidade em reunião de câmara (Deliberação 371/2005) e já se encontra pré-avaliado favoravelmente na sua quase totalidade pelo Comité Mundial do Património. Com esta evidente lacuna, o trabalho empenhado dos muitos técnicos da CML, em particular da Unidade de Projecto da Baixa Chiado, e mais recentemente da SRU, é totalmente ignorado.
2. A dita Proposta de Revitalização faz autêntica tábua rasa das directivas de gestão descritas no dossier de candidatura que se destinam a garantir a salvaguarda das características actuais de autenticidade e integridade da Baixa pombalina. Características que a CML se compromete a respeitar no momento da candidatura. Nesta Proposta de Revitalização, a Baixa é reduzida a um mero pretexto de "dinamização" imobiliária e avaliada quase e somente em termos de números e de oportunidades de negócio, sem nenhuma consideração pela salvaguarda das suas características de excepcionalidade.
3. A Proposta de Revitalização da Baixa-Chiado não apresenta, nem pretende apresentar, nenhuma sintonia com as mais recentes recomendações do Comité do Património Mundial e com as mais básicas teorias de conservação de centros históricos. Desta total ausência de sensibilidade são exemplos a alteração da imagem histórica da frente ribeirinha (cuja representação iconográfica ao longo dos tempos tem servido para a sua consolidação como referente monumental), a tentativa de uniformização tipológica de fachadas ou ainda a eliminação da diversidade do edificado acumulado ao longo da sua história.
4. O texto da referida proposta apresenta sérias e frequentes contradições na explicitação de objectivos e de acções concretas a implementar, como é possível constatar nos excertos de leitura citados.
5. A aprovação da Proposta de Revitalização da Baixa-Chiado pressupõe a criação de todo um conjunto de novas sociedades e subsociedades de gestão, envolvendo muitos milhões de euros de dinheiro público que só servirão para aumentar o peso da máquina burocrática de licenciamento de obras de conservação e reabilitação e atrasar significativamente a implementação das verdadeiras acções de dinamização.
Por todas estas razões, o Plano de Revitalização da Baixa-Chiado, na forma e conteúdo em que se apresenta, produz-me uma profunda tristeza pelo sério perigo que constitui para o futuro da Baixa pombalina como referente único na história do urbanismo português e como monumento cultural da humanidade. Exactamente porque não apresenta garantias de salvaguarda das características únicas de que a Baixa é testemunho.
De facto, o Plano de Revitalização da Baixa Pombalina pretende administrar um centro histórico de ocupação milenar como mais um centro comercial, esquecendo a sua verdadeira essência e evolução. A Baixa não tem que, não pode e não deve competir com os centros comerciais da nossa época, que não existiam no século XVIII e que não se sabe até quando existirão. Por essa razão, a Baixa pombalina não deve ser transformada irreversivelmente numa "quinta" submetida a horários estritos e normas de segurança prioritariamente ao serviço míope de um comércio e de um turismo mal entendidos.
Pelo contrário, a Baixa necessita de operações cirúrgicas bem definidas que ajudem a manter o seu espírito original, o comércio tradicional e a patina de gerações, dotando-a, ao mesmo tempo, de equipamentos da modernidade que permitam dar continuidade, sem sobressaltos, à sua longa existência. Não necessita certamente de planos de urbanização à imagem dos elaborados pelo Programa Polis e de se constituir em mais uma Expo ou ainda de ver adiado o processo já iniciado para a sua classificação como monumento nacional. A Baixa deve prioritariamente ser transmitida às novas gerações o mais autêntica e íntegra possível.
Por fim, creio que a imagem da Câmara Municipal de Lisboa não deve sair lesada de todo este processo, pela sua incapacidade na coordenação das várias iniciativas que tenta levar a cabo relativamente ao coração mais emblemático da cidade, digno de reconhecimento nacional e internacional.