Câmara aposta em cansaço para resolver Rivoli
Sem luz, sem electricidade nas tomadas e sem uma porta aberta para o exterior, os ocupantes do Rivoli continuaram ontem a recusar-se a abandonar o teatro. A Câmara Municipal do Porto endureceu as condições e entregou uma queixa-crime no Ministério Público por ocupação indevida. Do lado da autarquia, não haverá diálogo, mas também não haverá polícia. Por Inês Nadais e Nuno Amaral
O silêncio de Rui Rio e uma queixa-crime por ocupação indevida - dois dias depois de terem ocupado o Rivoli em protesto contra a privatização da gestão daquele teatro municipal do Porto, foi isto que os cerca de 20 manifestantes obtiveram da autarquia. Não devem obter muito mais: a Câmara Municipal do Porto parece claramente apostada no cansaço dos ocupantes. Ontem, ao longo do dia, foi reduzindo as condições de habitabilidade do teatro até cortar de vez a electricidade e as comunicações com o exterior pela porta lateral. Podia, mas não o fez, ter solicitado a intervenção da PSP. É esse o espírito: não haverá diálogo, mas também não haverá polícia.
Com o sit-in a entrar no terceiro dia - não há memória, no país, de uma ocupação destas proporções, e muito menos na história recente do protesto cultural português -, o impasse mantém-se no Rivoli. Ontem, três pessoas saíram do teatro - dois actores que integram o elenco de Woyzeck, uma produção do Teatro Nacional S. João (TNSJ) que se apresenta hoje e amanhã no Teatre Lliure, em Barcelona, e uma professora. Ninguém entrou: alegando "razões de segurança" (e apesar das garantias dadas pelos manifestantes, que chegaram a propor, por escrito, uma solução para a coabitação do protesto com o espectáculo), a Culturporto transferiu o concerto de Luís Represas para a Casa da Música.
O procedimento repete-se hoje: Paddy B e os Celtic Express actuam no Teatro do Campo Alegre, para que as portas do Rivoli possam manter-se fechadas. Tanto o público como os funcionários da sala, que ontem de manhã voltaram a concentrar-se na Praça D. João I, continuam fora de cena.
Ministra no PortoCom a ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, hoje no Porto, onde apresenta uma série de novos investimentos, há a expectativa de que se consiga encontrar uma saída de emergência para a ocupação. Questionada pelo PÚBLICO ontem à noite em Lisboa, no final de uma homenagem ao poeta António Ramos Rosa, a ministra reafirmou que não pretende intervir: "O Rivoli não é da minha alçada. Preocupo-me, mas o que tenho a dizer está dito e redito." Na véspera, Pires de Lima oferecera-se para mediar o conflito, caso viesse a ser esse o desejo de ambas as partes. De uma delas é: os ocupantes continuam a reclamar a intervenção do Ministério da Cultura. Mas também aqui pode haver um impasse: estando fora de questão, nas actuais condições, a deslocação da ministra ao Rivoli, só a saída de pelo menos um dos manifestantes (ou o envio de um dos ocupantes que entretanto já abandonaram o Rivoli) viabilizará o encontro.
Aconteça o que acontecer hoje, dificilmente Isabel Pires de Lima poderá alterar a privatização em curso na gestão do Rivoli - uma matéria em que a autarquia é soberana, como ontem reconheceu o director do TNSJ, Ricardo Pais, em declarações ao PÚBLICO: "A senhora ministra já fez o que tinha a fazer - disponibilizou-se para mediar. De resto, pouco mais poderá fazer, uma vez que o teatro é da autarquia. Acho que a câmara perde uma oportunidade muito simpática de desdramatizar a situação do Rivoli e de mostrar que, apesar da decisão que tomou, está em diálogo com os profissionais das artes cénicas e com os seus munícipes. Seria importante a câmara começar a abrir-se à discussão e a trazer em definitivo para a praça pública as suas responsabilidades em matéria de oferta cultural - e, em particular, as suas responsabilidades face às expectativas que a população tem do Teatro Rivoli, cujas obras foram financiadas exclusivamente com dinheiros públicos."
Continua, de resto, a ser esse o objectivo dos manifestantes: obter da autarquia garantias do cumprimento das missões de serviço público do Rivoli após a sua concessão a uma entidade privada. "Já percebemos que não querem dialogar connosco, e isso não nos incomoda. O que nos incomoda é que não prestem esclarecimentos públicos acerca do futuro do principal teatro municipal da cidade", insistia ontem Francisco Alves, director do Teatro Plástico e um dos organizadores da ocupação, que se iniciou precisamente no final de uma peça da companhia, Curto-Circuito. "A câmara continua, e provavelmente continuará, indisponível para dialogar, mas este protesto já é uma vitória: conseguimos que a cidade e o país deixassem de dar este assunto por encerrado, conseguimos que a concessão do Rivoli a um privado voltasse a não ser um facto consumado e conseguimos ter muita gente a pensar, e a lutar por isso, que a alienação do teatro municipal da segunda cidade do país não é aceitável."
A caminho do terceiro diaAo final da tarde, mais de 40 horas após o início do protesto, o ânimo espelhava o desgaste da passagem das horas. Com a porta lateral fechada, os mantimentos passaram a ser habilmente introduzidos por uma estreita fresta: maços de tabaco, pão, café, chocolates. A chuva, o corte da electricidade e o eterno retorno das palavras de ordem não fizeram, no entanto, adormecer a imaginação. Horas depois de a PSP ter desligado um amplificador colocado à porta do Rivoli, dois manifestantes conseguiram ligar outro a uma residência situada na Rua Magalhães de Lemos, que confina com o Teatro Rivoli: "Saguenail, je t"aime" (ver perfil), anunciava a escritora Regina Guimarães, de novo com o microfone na mão.
À chuva, e a querer demonstrar solidariedade para com os "barricados", Pedro Bacelar Vasconcelos, deputado municipal do PS, lamentou que a autarquia esteja a recorrer a mecanismos judiciais e policiais para sanar a questão. "É incompreensível que uma autarquia lide desta forma com pessoas da cultura, com gente civilizada", disse.
À hora de fecho desta edição, e decorridos praticamente dois dias desde o início da ocupação, o discurso dentro do Rivoli era o mesmo: "Estamos aqui para ficar. Somos muito mais determinados do que poderiam pensar." com Joana Gorjão Henriques e Tânia Laranjo