Chick Corea e Gary Burton, trinta e quatro anos depois
A dupla revisita hoje, em Lisboa, e amanhã, no Porto, Crystal Silence, um disco que teima em resistir ao tempo
Trinta e quatro anos depois da edição do disco Crystal Silence, o pianista Chick Corea e o vibrafonista Gary Burton conseguiram mobilizar gente suficiente para praticamente encher o Coliseu de Lisboa (hoje) e a sala principal da Casa da Música do Porto (amanhã), em concertos centrados, precisamente, nessa obra pioneira. Não é fácil avaliar as razões que explicam uma tão grande resistência ao desgaste do tempo. Corea, sobretudo, e também Burton, têm já carreiras tão longas, tão ricas e tão diversificadas, que são capazes de tocar gostos e sensibilidades muito diversos.
Mas o segredo de tão forte apelo pode residir, mais simplesmente, no conhecimento que muitos dos apreciadores da música da dupla têm dos nove temas que compõem Crystal Silence. O disco (ed. ECM) foi gravado na ressaca de colaborações de Corea com o grupo de Miles Davis, em obras que marcariam o nascimento da criativa fusão do jazz com o rock (Corea participou nas gravações de Filles de Kilimanjaro, In a Silent Way e Bitches Brew) e depois de uma experiência vanguardista com o grupo Circle, com companheiros como Dave Holland e Anthony Braxton. Talvez para compensar alguma "desordem" inevitável nas experimentações primordiais da música de fusão, Corea e Burton produzem, em Crystal Silence, um conjunto de músicas que se afirmam pela extraordinária contenção e economia formal e interpretativa, de um bom gosto avassalador e de uma profunda tranquilidade. Ouvir, mais de 30 depois, temas como Señor mouse, Children"s song ou What game shall we play today, continua a ser uma experiência extraordinária.
O percurso musical de Chick Corea, já com 64 anos, é marcado pelo desassossego. É notável a quantidade de colaborações, de grupos e de projectos criados e vividos pelo pianista. Acompanhou, no início de carreira, a cantora Sarah Vaughan, entrou em gravações históricas com Miles, foi um dos mais fortes cultores da música de fusão, com grupos como Return to Forever e Elektric Band, cultivou o experimentalismo vanguardista com o Circle, ao lado de Holland e Braxton, deixou-se seduzir pelas "almas" espanhola, brasileira e cubana, fez dupla com Herbie Hancock, gravou um tributo a Bud Powell, arriscou trabalhar com a Orquestra Filarmónica de Londres, ousou tocar e recriar Mozart, enfim, vagueando entre a fusão, mais marcante, o mainstream e o rigor clássico.
Gary Burton tem uma história menos extravagante. Começou por tocar piano, mas cedo cedeu aos encantos do vibrafone. No início dos anos 60 tocou com o pianista George Shearing e uns anos depois com Stan Getz. Em 1998 juntou-se a um grupo de notáveis (Corea, Pat Metheny, Holland e Roy Haynes) para gravar Like Minds, mas uma das coroas de glória da sua carreira é a sua ligação a Chick Corea, em concertos e em gravações onde é justo destacar a obra-prima agora revisitada nos espectáculos em Portugal.