Cientistas descobrem fóssil de criança de Australopithecus
Descoberta relatada
na Nature
é considerada uma
das mais importantes da paleontologia
Os cientistas imediatamente arranjaram um nome não oficial para o esqueleto quase completo de uma criança de Australopithecus afarensis com 3,3 milhões de anos descoberta na Etiópia: a bebé de Lucy, remetendo para o célebre fóssil também encontrado na região de Afar de uma fêmea desta espécie, considerada um antepassado do homem. Esta descoberta é uma das mais importantes da paleontologia, dizem hoje na revista Nature os cientistas que estudaram o fóssil.Os paleontólogos muitas vezes têm de se contentar com uns dentes ou uns fragmentos de osso para identificarem um fóssil. Mas o etíope Zeresenay Alemseged, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva (Alemanha), teve uma sorte fabulosa: para além do crânio completo, com impressões do cérebro no interior e com dentes de leite no maxilar, encontrou durante as escavações na zona de Dikika o torso completo e partes importantes dos ossos das pernas, dos braços e dos ombros. Descoberta quase inédita foi a do osso hióide, ou osso da língua, que permite estudar os sons que aquela espécie poderia produzir.
Este não é o primeiro fóssil de uma criança de Australopithecus descoberto: esse lugar é o do crânio conhecido como "a criança de Taung", encontrado em 1924, na África do Sul. Era de Australopithecus africanus, uma espécie um pouco mais recente que aquela a que pertenciam Lucy e a criança agora encontrada (que tem mais cerca de 150 mil anos que Lucy). Os Australopithecus afarensis, que terão vivido entre há 3,9 e três milhões de anos, são considerados antepassados do género Homo, a qual todos pertencemos.
Os ossos estavam escondidos dentro de um bloco de pedra e foram sendo descobertos nos anos de 2000, 2002 e 2003. A equipa de Alemseged teve de ir fazendo um trabalho de infinito cuidado e paciência: descascar os ossos da pedra, bocadinho a bocadinho, como se estivesse a tirar uma renda preciosa do interior de um bloco de cimento.
Mas o facto de o fóssil de Dikika estar tão completo pode dar pistas determinantes para compreender esta espécie e a evolução humana. Por exemplo, sobre a evolução da capacidade de se deslocar apenas sobre dois membros.
Os membros inferiores mostram que andava bem em pé, mesmo aos três anos. Mas as omoplatas são semelhantes às dos gorilas, e os dedos longos e curvos, o que sugere que não se sentiria muito desconfortável nas árvores.
Quanto ao osso hióide, parece ter um formato semelhante ao dos grandes primatas africanos actuais, e diferente do dos humanos. Mas não há muitas possibilidades de fazer comparações com fósseis de outros antepassados da humanidade: apenas se conhece um outro osso hióide, de Neandertal, uma espécie de humano já muito próxima da nossa (extinguiu-se há cerca de 30.000 anos, quando já existiam homens modernos).
Um cérebro que crescia devagarO facto de ser uma criança, ainda em desenvolvimento, permite colher dados sobre diferenças no crescimento dos indivíduos, um processo fundamental para a evolução. Quanto ao cérebro, o crânio revela que deveria ter cerca de 330 centímetros cúbicos, o que não é muito diferente de um chimpanzé actual, com a mesma idade. Só que, ao compararem o crânio da menina de Dikika com o de adultos da mesma espécie, os cientistas chegaram à conclusão de que, aos três anos, deveria ter atingido apenas entre 63 e 88 por cento do seu tamanho em adulto. Ora um chimpanzé da mesma idade já teria um cérebro com 90 por cento do tamanho de um adulto - isto revela um padrão de desenvolvimento cerebral demorado, mais semelhante ao dos humanos, que têm uma infância prolongada para permitir que a aprendizagem e o crescimento levem mais tempo.
Talvez esse desenvolvimento mais demorado do cérebro tenha sido um factor de sucesso no ambiente variado em que esta menina vivia: florestas luxuriantes misturadas com vegetação rasa e muita água, em lagos ou no delta de um rio. Aliás, o fóssil terá chegado até nós, com mensagens desse mundo de há mais de três milhões de anos, porque terá sido enterrado subitamente, numa cheia ou inundação. Crocodilos, caracóis e rinocerontes - ou pelo menos os seus antepassados - fariam também parte desse cenário, completado com vários vulcões em erupção.