Evidentemente, Lopes é o primeiro a saber que não está a fazer nem "They Live by Night" nem "Detour", assim como sabe que elementos como esses (o par, a série B, o road movie) estão entre aquilo que a época "pós-clássica" mais recuperou do classicismo (do classicismo "marginal") do cinema americano, por entre o reconhecimento, a vénia e a apropriação modelar - assim estabelecendo novas "matrizes", tão poderosas como as originais.
Este arrazoado todo para chegar aqui: vê-se "98 Octanas" e, se parece claro que com a sua inspiração clássica não mantém mais do que uma relação longínqua, também se torna clara (e depressa) a sua proximidade com esses outros modelos pós-clássicos. Godard à cabeça, especialmente o "Pierrot le Fou", que se diria evocado, de modo directo, nalguns planos e nalguns diálogos (várias "rimas" para o célebre "je m"apelle Ferdinand").
Estruturalmente, não estaremos assim tão longe desse ou doutros Godards, sobretudo daqueles em tudo parte de um dispositivo narrativo minimalista: há um homem (Rogério Samora) e uma mulher (Carla Chambel) que se encontram e formam um par, praticamente do nada. Seguem viagem juntos, sendo que as peripécias decorrentes parecem valer menos por si do que pelo contributo que dão a uma ritualização (ou a uma "mise-en-scène") do par, espécie de teste permanente à transformação de uma "improbabilidade" numa "possibilidade" (que é, claro, um tema bem godardiano).
Se o princípio subjacente a "98 Octanas" é forte, torna-se difícil dizer onde está (e por que está) a raiz do que nos parece ser o seu falhanço. Paradoxalmente, dada até a preponderância do par central, dir-se-ia um filme hesitante entre seguir uma aproximação algo "hierática" às personagens e amenizá-la, abrindo as portas ao episódico e ao anedótico - entre ter "figuras" ou "personagens" o filme não se decide, como se quisesse ter as duas coisas e assim adulterasse as primeiras sem ganhar as segundas.
Talvez por isso a preocupação "biográfica" (de modo mais exemplar, a sequência, no fim, com a avó da rapariga) pareça sempre irrelevante, pura dispersão de energia. Sem centro, "98 Octanas" perde um fio condutor "necessário", vivendo de "clarões" (um longo plano na praia, com vento e ondas) sem sequência, e de diálogos que, sendo artificiosos e fugindo constantemente ao naturalismo, às vezes são capazes de "cerrar" o filme e os seus protagonistas, mas demasiadas vezes ficam como que perdidos no ar, "pendurados" numa deriva que fica sempre por resolver.