Músicos escaparam ao debate sobre o passado nacional-socialista
A poeira em torno da autobiografia de Günter Grass começou a pousar. Em muitos domínios artísticos na Alemanha o envolvimento com o Terceiro Reich ou a mácula de pertencer a uma organização nacional-socialista foram suficientes para que os criadores sofressem o escrutínio de uma visão maniqueísta - a obra produzida até 1933 seria "formidável", o resto , mesmo que genial, como o mostram os exemplos paradigmáticos de Leni Riefenstahl ou do escultor Arno Breker, é "rejeitável". Ao julgamento público escapou a música, com a excepção única de Wilhelm Furtwängler.
A música foi sempre simbólica para a cultura alemã. Por isso, foi privilegiada pela máquina propagandística de Joseph Goebbels, integrando todos os sectores da sociedade nacional-socialista. Dos cânticos da Juventude Hitleriana, passando pelos concertos nas fábricas, à oferta, aos feridos de guerra, de bilhetes para o Festival de Bayreuth e Salzburgo, até às orquestras de Teresin (aqui, por exemplo, Viktor Ullmann compôs O Imperador de Atlântida) e de Auschwitz. A música acompanhou os primeiros dias do Reich - Adolf Hitler foi celebrado como chanceler com um concerto da Filarmónica de Berlim dirigida por Wilhelm Furtwängler - até aos crematórios dos campos de extermínio. Uma das primeiras preocupações de Goebbels - que além de ministro da Propaganda era presidente da Câmara de Cultura do Reich - foi a "reconstrução de um património musical" livre das influências "degeneradas" do vanguardismo ("degenerada" é toda a obra musical que não obedeça aos cânones definidos em Düsseldorf, em 1938, pelo ministro da Propaganda). Bayreuth torna-se num dos bastiões do regime - o "tio Hitler" é amigo da família Wagner desde 1923 -, um aliado na luta contra o "desnaturamento" da ópera wagneriana. Aqui teorias raciais e estéticas mesclam-se, apoiadas por estudos musicológicos pretensamente científicos mandados realizar pelo Ministério da Propaganda. O próprio Führer era um entusiasta do património musical alemão e considerava as composições de Beethoven, Wagner e Bruckner como expressões sublimes da alma germânica.
Os que partiramApós a tomada do poder pelos nacionais-socialistas a maioria dos músicos notáveis judeus como Bruno Walter, Otto Klemperer e Arnold Schönberg deixaram a Alemanha. Contudo, a maioria escolheu ficar. Depois da final da guerra procuraram desculpabilizar-se pelo seu colaboracionismo.
O maestro Karl Böhn, um notório embaixador da política nacional-socialista, publicou um livro de memórias no mínimo amnésico, a soprano Elisabeth Schwarzkopf, que morreu em Agosto passado, recusou durante anos a fio o seu envolvimento com o regime, mais tarde classificando-o como mera "rotina" (a filiação de uma mulher no partido nazi está longe, do ponto de vista histórico, de ser uma rotina, no partido as mulheres estavam sub-representadas, e mesmo artistas como a cineasta maldita Leni Riefenstahl nunca se filiaram). Schwarzkopf, que foi amante de uma alta patente das Waffen SS, viria a ter uma carreira brilhante depois da guerra e casaria mesmo com um judeu britânico, Walter Legge. Outros compositores oficiais como Werner Egk ou Carl Orff continuaram a exercer altas funções na Alemanha do pós-guerra.
Um homem não político?O mais brilhante dos músicos a "cooperar" com o Terceiro Reich é, sem margem para dúvidas, Wilhelm Furtwängler, que dirigiu a Filarmónica de Berlim de 1922 a 1945. Consequentemente, a discussão acerca da sua vida ainda provoca um aceso debate sobre o papel da arte e dos artistas no regime hitleriano e, mais fundamentalmente, a relação entre a arte e a política. Dizem os seus biógrafos que Wilhelm Furtwängler era em substância um homem não político. Mas era um patriota, por isso não lhe passava pela mente abandonar o seu país. Ideologicamente, Furtwängler podia ser caracterizado como um "velho" alemão, um conservador guilhermista e um elitista autoritário. Como a maioria dos seus contemporâneos, viu com bons olhos o fim da ineficaz experiência democrática da República de Weimar (1918 a 1933).
Foi ele o maestro escolhido pelo Presidente Paul von Hindenburg para dirigir Os Mestres Cantores de Wagner no concerto de boas-vindas a Adolf Hitler. No entanto, Furtwängler nunca se filiou no partido nazi, ao contrário de Herbert von Karajan. Pouco depois da ascensão ao poder dos nazis, o maestro entraria em conflito com o novo regime. Na sequência de disputa pública com o ministro da Propaganda, Joseph Goebbels, sobre a direcção artística e independência, Wilhelm Furtwängler demitir-se-ia do seu cargo como director da Filarmónica de Berlim e da Ópera de Berlim. Mais tarde viria a assumir estes postos quando lhe asseguraram uma certa independência artística (que usou para proteger vários músicos judeus). Deve esta independência a Hitler, que foi indulgente como o não-conformismo do maestro.
A importância cultural de Furtwängler ultrapassava considerações políticas (para fúria de Goebbels foram mesmo ignoradas as imagens, captadas num concerto, nas quais o maestro limpa a mão nas calças após Goebbels lha ter apertado). A partir daí, e até ao final do Terceiro Reich, continuaria a dirigir na Alemanha e no exterior com um enorme sucesso. (Basta recordar a tournée britânica de 1935. A orquestra esteve também em Lisboa todos os anos entre 1941 e 1944, sob a direcção de outros maestros, entre os quais Karl Böhm.)
No final da Guerra seria presente a tribunal para um processo de "desnazificação" e foi ilibado. Pouco mais tarde seria convidado para dirigir a Sinfónica de Chicago, o que não viria aconteceu devido à campanha organizada pelo establishment cultural judaico. Em sua defesa saíram o violinista Yehudi Menuhin e o seu pai Moshe Menuhin, que afirmaram que o maestro era "vítima de rivais invejosos e ciumentos". Um olhar mais próximo da vida e da carreira de Wilhelm Furtwängler revela factos "politicamente incorrectos" sobre o papel da arte e dos artistas no Terceiro Reich e recorda também que a produção artística sublime não é de modo nenhum produto exclusivo de sociedades democráticas (pense-se também, por exemplo, nos compositores e maestros soviéticos e no seu envolvimento com o comunismo).
A música foi sempre simbólica para a cultura alemã. Por isso, foi privilegiada pela máquina propagandística de Joseph Goebbels, integrando todos os sectores da sociedade nacional-socialista. Dos cânticos da Juventude Hitleriana, passando pelos concertos nas fábricas, à oferta, aos feridos de guerra, de bilhetes para o Festival de Bayreuth e Salzburgo, até às orquestras de Teresin (aqui, por exemplo, Viktor Ullmann compôs o Imperador de Atlântida) e de Auschwitz. A música acompanhou os primeiros dias do Reich - Adolf Hitler foi celebrado como chanceler com um concerto da Filarmónica de Berlim dirigida por Wilhelm Furtwängler - até aos crematórios dos campos de extermínio.
Uma das primeiras preocupações de Goebbels - que além de ministro da Propaganda era presidente da Câmara de Cultura do Reich - foi a "reconstrução de um património musical" livre das influências "degeneradas" do vanguardismo ("degenerada" é toda a obra musical que não obedeça aos cânones definidos em Düsseldorf, em 1938, pelo ministro da Propaganda). Bayreuth torna-se num dos bastiões do regime - o "tio Hitler" é amigo da família Wagner desde 1923 -, um aliado na luta contra o "desnaturamento" da ópera wagneriana. Aqui teorias raciais e estéticas mesclam-se, apoiadas por estudos musicológicos pretensamente científicos mandados realizar pelo Ministério da Propaganda. O próprio Führer era um entusiasta do património musical alemão e considerava as composições de Beethoven, Wagner e Bruckner como expressões sublimes da alma germânica.
Os que partiramApós a tomada do poder pelos nacionais-socialistas a maioria dos músicos notáveis judeus como Bruno Walter, Otto Klemperer e Arnold Schönberg deixaram a Alemanha. Contudo, a maioria escolheu ficar. Depois da final da guerra procuraram desculpabilizar-se pelo seu colaboracionismo.
O maestro Karl Böhn, um notório embaixador da política nacional-socialista, publicou um livro de memórias no mínimo amnésico, a soprano Elisabeth Schwarzkopf, que morreu em Agosto passado, recusou durante anos a fio o seu envolvimento com o regime, mais tarde classificando-o como mera "rotina" (a filiação de uma mulher no partido nazi está longe, do ponto de vista histórico, de ser uma rotina, no partido as mulheres estavam sub-representadas, e mesmo artistas como a cineasta maldita Leni Riefenstahl nunca se filiaram). Schwarzkopf, que foi amante de uma alta patente das Waffen SS, viria a ter uma carreira brilhante depois da guerra e casaria mesmo com um judeu britânico, Walter Legge. Outros compositores oficiais como Werner Egk ou Carl Orff continuaram a exercer altas funções na Alemanha do pós-guerra.
Um homem não político?O mais brilhante dos músicos a "cooperar" com o Terceiro Reich é, sem margem para dúvidas, Wilhelm Furtwängler, que dirigiu a Filarmónica de Berlim de 1922 a 1945. Consequentemente, a discussão acerca da sua vida ainda provoca um aceso debate sobre o papel da arte e dos artistas no regime hitleriano e, mais fundamentalmente, a relação entre a arte e a política. Dizem os seus biógrafos que Wilhelm Furtwängler era em substância um homem não político. Mas era um patriota, por isso não lhe passava pela mente abandonar o seu país. Ideologicamente, Furtwängler podia ser caracterizado como um "velho" alemão, um conservador guilhermista e um elitista autoritário. Como a maioria dos seus contemporâneos, viu com bons olhos o fim da ineficaz experiência democrática da República de Weimar (1918 a 1933).
Foi ele o maestro escolhido pelo Presidente Paul von Hindenburg para dirigir Os Mestre Cantores de Wagner no concerto de boas-vindas a Adolf Hitler. No entanto, Furtwängler nunca se filiou no partido nazi, ao contrário de Herbert von Karajan. Pouco depois da ascensão ao poder dos nazis, o maestro entraria em conflito com o novo regime. Na sequência de disputa pública com o ministro da Propaganda, Joseph Goebbels, sobre a direcção artística e independência, Wilhelm Furtwängler demitir-se-ia do seu cargo como director da Filarmónica de Berlim e da Ópera de Berlim. Mais tarde viria a assumir estes postos quando lhe asseguraram uma certa independência artística (que usou para proteger vários músicos judeus). Deve esta independência a Hitler, que foi indulgente como o não-conformismo do maestro.
A importância cultural de Furtwängler ultrapassava considerações políticas (para fúria de Goebbels foram mesmo ignoradas as imagens, captadas num concerto, nas quais o maestro limpa a mão nas calças após Goebbels lha ter apertado). A partir daí, e até ao final do Terceiro Reich, continuaria a dirigir na Alemanha e no exterior com um enorme sucesso. (Basta recordar a tournée britânica de 1935. A orquestra esteve também em Lisboa todos os anos entre 1941 e 1944, sob a direcção de outros maestros, entre os quais Karl Böhm.)
No final da Guerra seria presente a tribunal para um processo de "desnazificação" e foi ilibado. Pouco mais tarde seria convidado para dirigir a Sinfónica de Chicago, o que não viria aconteceu devido à campanha organizada pelo establishment cultural judaico. Em sua defesa saíram o violinista Yehudi Menuhin e o seu pai Moshe Menuhin, que afirmaram que o maestro era "vítima de rivais invejosos e ciumentos". Um olhar mais próximo da vida e da carreira de Wilhelm Furtwängler revela factos "politicamente incorrectos" sobre o papel da arte e dos artistas no Terceiro Reich e recorda também que a produção artística sublime não é de modo nenhum produto exclusivo de sociedades democráticas (pense-se também, por exemplo, nos compositores e maestros soviéticos e no seu envolvimento com o comunismo).