Três notas "palestinianas"
"O Paraíso, Agora" é um filme tanto mais inteligente quanto, se ousa representar minuciosamente as cenas de preparação dos bombistas, tem a ética e a complexidade suficientes para introduzir uma surpreendente peripécia no argumento e depois nos negar a consumação do acto, isto é, de nos dar a ver como espectáculo final o horror mortífero do terrorismo
Morreu na semana passada Naguib Mahfouz, escritor egípcio, Prémio Nobel da Literatura. A notícia neste jornal assinalava que ele tinha escrito 30 argumentos e que muitos egipcíos acabaram por conhecer as suas histórias através do cinema. E, no entanto, o que eram indicados como exemplos de obras suas adaptadas ao cinema eram "El Callejón de los Milagros" do mexicano Jorge Fons e "The Beginning and the End", que aliás se chama "Principio y fin", de Arturo Ripstein, que aliás também é mexicano. Isto dá que pensar, pois que seguramente não se trata apenas da notícia do PÚBLICO; mas da informação providenciada, por via de agências por certo.Ora, não me ocorre outro caso de um escritor galardoado com o Prémio Nobel com uma tão íntima relação com o cinema, por cargos vários que desempenhou, pela adaptação de obras suas e pela escrita directa de argumentos. Foi, por exemplo, um dos argumentistas do espantoso "Saladino" de Youssef Chahine mas sobretudo, na então pujante cinematografia egípcia, a "invenção do realismo" nos filmes de Salah Abou Seif foi de facto obra dos dois, Abou Seif e Mahfouz.
Ditado por uma circunstância muito recente, este é um ponto prévio num texto de tópicos palestinianos como chamada de atenção de desconhecimentos correntes, que muitas vezes os fluxos informativos estão longe de preencher, antes ainda mais acentuam.
Fizeram também as circunstâncias com que durante a elaboração deste texto me tivesse de novo confrontado com aquele que foi o primeiro que recordo como "filme israelita", "Journal de campagne" de Amos Gitai (a indicação do título em francês deriva da produção e de internacionalmente o filme ser assim referido). É um documentário nos territórios ocupados da Cisjordânia e de Gaza no momento da primeira invasão do Líbano, em 1982.
Se entretanto muitos outros exemplos conhecemos internacionalmente de cinema israelista, a hipótese de um "cinema palestiniano" tem sempre, inevitavelmente, surgido inscrita na realidade de uma ocupação. Não se infira daqui um inelutável antagonismo; para citar o exemplo concreto, um filme palestiniano como "O Paraíso, Agora" é uma co-produção israelita.
Mas com Gitai dir-se-á também que "o cinema é um meio muito forte de se interrogar, de colocar as questões e de evitar o pesadelo das imagens quotidianas da televisão". E que também por isso o cinema importa no modo como dá a ver e a interrogar, e não pela socilitação paternalista para com um objecto mais ou menos "exótico".
1 - Tenho a algo incómoda sensação de que sobre o "Paraíso, Agora" se estão a formatar alguns lugares-comuns, a saber, que constitui a raridade de ser um filme palestiniano, que aborda a questão candente dos bombistas-suicidas, que foi mal recebido por digamos "ortodoxos" de ambos os lados, palestinianos e israelistas, e que isso até seria "bom sinal". É também por razões como estas que fiz a prevenção sobre o "paternalismo".O terrorismo é uma questão das mais candentes. A sua representação também, tanto mais que dos actos individuais de suicidas ao "hiper-terrorismo" iniciado com o 11 de Setembro, as práticas terroristas são também elaboradas em função das suas repercussões mediáticas.
Como se pode então representar o terrorismo? Esta é uma questão, é na actualidade "a questão", que repõe agudamente "o travelling de Kapo": "Vejam em "Kapo" o plano em que [Emmanuelle] Riva se suicida, atirando-se sobre o arame farpado electrificado: o homem que decide fazer, nesse momento, um "travelling" para reenquadrar o cadáver em contra-picado, tendo o cuidado de colocar a mão erguida num ângulo preciso do seu enquadramento final, esse homem só tem direito ao mais profundo dos desprezos". É "Da abjecção", a famosa crítica de Jacques Rivette a "Kapo" de Gillo Pontecorvo. Sim há uma moral do "travelling" ou antes, as questões de representação supõem também uma ética. Há qualquer coisa de obsceno em oferecer-se como possibilidade de espectáculo cinematográfico um filme de "reconstituição" de actos terroristas.
O olhar de Hany Abu-Assad é suficiente próximo para nos transmitir de modo quase documental o quotidiano em Nablus, e aí está a primeira questão: como é que na superfície desse quotidiano está em potência "a fábrica dos mártires". É um olhar suficiente complexo para nos transmitir diversas perspectivas face à ocupação, e perspectivas, note-se, que não são apenas as de decorrem imediatamente das personagens.
Há Saïd e há Khaled, há também Suha, mas há também dois fantasmas, o pai de Saïd e o de Suha; este foi um "mártir" da resistência, aquele um "colaboracionista" executado. O entendimento das personagens e das lógicas de acção não pode ser dissociado dos níveis geracionais e do modo como cada um dos descendentes se posiciona face à figura paterna, tanto mais no caso de Saïd, para o qual o objectivo terrorista e suicida é também um modo simultaneamente de vingança e expiação, no quadro geral do sentimento de "humilhação" dos palestinianos.
Mas "O Paraíso, Agora" é um filme tanto mais inteligente quanto, se ousa representar minuciosamente as cenas de preparação dos bombistas, inclusive com o momento cómico quando falha a câmara video para a gravação da mensagem de Khaled (essas mensagens que os bombistas-suicidas deixam), tem a ética e a complexidade suficientes para introduzir uma surpreendente peripécia no argumento e depois nos negar a consumação do acto, isto é, de se negar a fazer um "travelling de Kapo", de nos dar a ver como espectáculo final o horror mortífero do terrorismo. E isso é a força de um olhar de cineasta e um imenso mérito - que tanto mais dispensa as curiosidades "paternalistas".
2 - Uma rapariga palestiniana no meio de escombros - a imagem surgiu-me, "re-surgiu-me" melhor dizendo, há três semanas atrás, em pleno auge da nova guerra no Líbano e em circunstâncias assaz perturbantes.Foi em Beaubourg, à beira da conclusão de "Voyage(s) en Utopie", a muito problemática exposição de Jean-Luc Godard. Estava a ver a sua obra mais recente, "Vraix faux passeport: fiction documentaire sur des occasions de faire un jugement à propos de la façon de faire des films", feita para o evento. É outro exemplo das suas radicais reelaborações do princípio da montagem, tanto que um "filme", se é que "filme" é "ainda" a designação pertinente, dispensa o que se identifica como acto de filmar; há "apenas" montagem de extractos pré-existentes, de ficções ou documentários.
A memória suficientemente singular que agora me faz retomar essa imagem foi a de, subitamente, no fluxo, ter havido uma dupla perturbação. Por um lado dir-se-ia que aparecia repentinamente uma inusitada referência da próxima actualidade ; por outro, e diferentemente de todos os outros extractos, essa imagem era comentada, com as vozes de Godard e Anne-Marie Miéville. Fiquei alguns momentos perplexo até a memória se me esclarecer: era um extracto de "Ici et Ailleurs", que tenho como uma das obras mais extraordinárias de Godard.
Esta imagem tem uma história muita particular. Ela vem do chamado "filme da Palestina", "Jusqu"à la victoire", de 1970, quando Godard "desapareceu" no colectivo do Grupo Dziga Vertov, e foi retomada em "Ici et Ailleurs" de 74, sendo que no entretanto se deu a passagem do imperativo militante de "une image juste" a "juste une image".
Nos escombros, a rapariga diz um poema, "Eu resisterei" de Mahmoud Darwish (poeta palestiniano com quem aliás Godard mantém uma relação próxima, e que comparece em "Notre Musique"). Mas Godard e Miéville dissecam a cena, de como afinal aquele é "o velho teatro revolucionário".
Tanto tempo passado, quando sempre que há situações de conflito ressurgem questões de fabricação e manipulação, como de novo agora ocorreu, não deixa de ser impressionante pensar que há mais de 30 anos já havia das imagens militantes e de propaganda uma tal crítica cinematográfica - crítica por meios cinematográficos.
3 - "Pode a arte ser um modo de aproximação entre homens provindos de campos antagonistas?"A formulação tem tudo de um lugar-comum de retórica humanista. E no entanto há se calhar momentos, percursos, que nada tendo de comum nos levam a interrogar. O caso é da Orquestra do Divã Ocidental-Oriental, fundada por Daniel Barenboim e Edward Said, um israelita e um palestiniano, e do percurso que conduziu ao Concerto de Rammallah.
De Goethe a Ramallah? Estranho percurso!. Socilitado por Weimar, Capital Cultural da Europa em 1999, ocorreu a Barenboim colher na figura culturalmente tutelar da cidade esse conceito Ocidental-Oriental e, conjuntamente com Said, tentar formar uma orquestra de jovens israelistas e árabes (palestinianos, jordanos, sírios, libaneses e egípcios), que tendo prosseguido veio a ter depois base em Sevilha.
Em si o concerto de Ramallah é, por um lado, apenas um concerto, por outro lado uma ocasião de propaganda, pois tendo tido difusão televisiva foi também ocasião de vários discursos de palestinianos. O prólogo e o epílogo, com as peripécias da ida (só possível com passaportes diplomáticos espanhóis) e da partida (com a saída precipitada dos músicos sírios e israelitas) são os factos de excepção.
Mas antes do concerto, há um outro dvd, e esse, o documentário "Knowledge is the beginning", é excepcional. É um testemunho da singularidade e determinação quer de Barenboim, quer de Said, o primeiro por exemplo afrontando directamente os poderes israelista ao receber no parlamento, no Knesset, o Wolf-Prize, e ao invocar os termos da declaração de independencia de Israel para contestar os colonatos e a ocupação, o segundo por exemplo atacando os governos árabes pelos destinos a que condenam as gerações jovens.
Mas sobretudo é um documento de como estes jovens músicos estabelecem uma ponte na ignorância mútua entre os povos, documento que de modo nenhum contorna as dificuldades: os que se recusam a falar de política, o libanês que interrompe o israelista quando este refere os seus anos no exército, etc.E há um momento em particular impressionante, ainda em Weimar, que é a ida ao campo de concentração de Buchenwald - e há um israelista que, inicialmente, muito mais que tocar com árabes, o que se lhe tinha afigurado mais difícil era vir à Alemanha.
Poder-se-á notar, conhecido o pensamento de Said, ser paradoxal que não ser praticamente questionada a ponte do conhecimento, isto é, o canone musical ocidental. Mas essa é questão que fica para uma oportunidade de falar do interessantissimo diálogo do músico e do crítico, e Barenboim e Said, "Pallels and Paradoxs. Explorations in Music and Society".