Um herói do Século XX
Ofilme começa com a voz monocórdica de uma mulher lendo as honrarias de um morto. O caixão está num salão de Estado que vibra ao som da Marcha Fúnebre de Chopin. Um soldado muda diapositivos que recordam o morto. A cena mistura imagens autênticas com a sua reconstituição ficcional. Uma voz de homem diz então: "Herói do Trabalho Socialista... Ordem da Revolução de Outubro... Artista do Povo da URSS... Prémios Estaline? Cinco... Prémio Internacional da Paz... Tudo lixo". Dirigentes soviéticos velam o morto e a voz diz: "Vejam, chegaram os corvos. Até os nossos cadáveres eles reclamam. Ah, mas até eles devem sentir alguma coisa. Morreu-lhes o compositor de Estado. Eu morri. Que outra razão teria eu para estar a rir?". E no caixão aberto está o morto que fala: Dmitri Shostakovich.Assim começa o singular filme Testimony, baseado nas memórias de Shostakovich tal como contadas a Solomon Volkov. Comemora-se este ano o centenário do nascimento do compositor (1906-1975), um dos maiores da Rússia, a par de Prokofiev, no século XX. Ben Kingsley representa Shostakovich neste filme realizado por Tony Palmer (1988).
A vida criativa de Shostakovich decorreu sob o regime soviético. Tinha um tão grande talento que o estalinismo precisava dele. Sobreviveu ao terror totalitário, iludindo-o com os títulos absurdamente soviéticos que dava às suas obras abstractas ou de sentido oposto ao título; foi afastado e louvado, louvado e afastado, denegrido em público, recebido e beijado por Estaline e quase eliminado às ordens do terror de Estaline. Para sobreviver, "denunciava os erros", seus e alheios, e, em privado, compunha contra o regime e ditava a Volkov as suas memórias sob o estalinismo.
Testimony recria o universo de terror e a complexidade do dilema de Shostakovich: ser ao mesmo tempo compositor "do Estado" e o seu maior inimigo musical. O filme transforma a contradição numa oposição entre ele e o próprio Estaline. O ditador está em todo o lado. Lendo fichas de polícia. Nos camarotes, ouvindo música. A sua cabeça de pedra está nas ruas, nos corredores, à janela da casa de Shostakovich. Big Brother is watching you. Stalin aproveita-se do prestígio de Shostakovich no Ocidente, Shostakovich aproveita-se dessa necessidade do regime para continuar a compor.
O filme ilude a verosimilhança narrativa habitual do cinema, antes se constrói como as memórias de um morto, pedaços de pesadelos onde o real e o onírico se misturam ao som da música, que intervala os episódios. Mais que a estória, são as ideias e a música que justificam as imagens. Exercício fílmico muito complexo, o filme é imperfeito, tendo falhas de montagem e episódios demasiado ideológicos na segunda parte; mas a ousadia da concepção faz dele exemplar único. Demonstra visual e musicalmente como a angústia que ouvimos em Shostakovich é a emoção definidora do século XX (anunciada no quadro, agora recuperado, O Grito, de E. Munch, 1893).
Outro filme brilhante sobre Shostakovich é o documentário The War Symphonies, de Larry Weinstein (1997). O compositor é apresentado através do período da 2ª Guerra Mundial, quando escreveu algumas das suas sinfonias mais significativas. Os depoimentos, a maior parte de amigos e especialistas russos, são de grande qualidade. A narração da estreia da sua sétima sinfonia em Leninegrado é notável: durante o cerco nazi, músicos e espectadores morrendo de fome vivem aquela música empolgante e vibrante como nunca ninguém antes e depois alguma vez viveu a música (e neste caso inspirada no Bolero de Ravel... outra ironia de Shostakovich). A coragem do compositor é também exemplificada na recriação da cena da magnífica ópera Lady Macbeth de Mtsensk, que mostra a morte de um tirano, envenenado... e esse era o maior terror de Estaline, que assistiu à ópera... Além do seu grande interesse histórico e musical, o filme revela um brilhantismo técnico na montagem perfeita entrelaçando depoimentos, imagens e extractos musicais.
Menos conseguido é o documentário Sonata para Viola, realizado ainda na URSS por Semyon Aranovich e Alexander Sokurov (1981). Apresenta a versão oficial da música de Shostakovich, mas é interessante pela devoção ao compositor e pelas imagens e sons de arquivo. Apesar disso, foi proibido na URSS até 1986.
Sendo agora patente que andou décadas a enganar o regime, Shostakovich junta esse atractivo dramático à qualidade da música, sendo assim um tema ainda mais interessante para a televisão. Os três filmes referidos estão disponíveis em DVD; Testimony não tem legendas. O canal ARTE iniciará um ciclo com o premiado documentário Shostakovich contra Estaline (09.09), um bailado do autor em directo de Moscovo (23.09), a Lady Macbeth de Mtsensk (11.11) e outros programas.
Outras efemérides de compositores se comemoram este ano: os centenários de Franz Schumann (1810-1856), Armando José Fernandes (1906-1983), Fernando Lopes-Graça (1906-1994) e, com atraso, o cinquentenário de Luís de Freitas Branco (1890-1955). Da RTP, recordo sobre os dois últimos um interessante programa de 1990 sobre Freitas Branco e um Artes e Letras realizado ainda em vida de Lopes Graça (1993). Mas na Dois, e na ausência de informação atempada, julgo que nada passou sobre Shostakovich, Schumann, Fernandes, Freitas Branco e Lopes Graça; nem mesmo sobre estes a Dois repescou o que há em arquivo. O concerto pago pela própria RTP de estreia absoluta de Manfredo, de Freitas Branco, passou na Antena 2, mas não no canal Dois.
Freitas Branco sofreu dissabores por não aderir ao salazarismo. Foi afastado do Conservatório e, mais tarde, da Emissora Nacional, aqui sob o pretexto ridículo de usar gravata de xadrez com vermelho quando morreu o Presidente da República Oscar Carmona. Caiu num certo esquecimento, e não mereceu a mesma atenção musical e extramusical que favoreceu Lopes Graça, pois este, independentemente da sua qualidade como compositor, adquiriu proeminência pública após o 25 de Abril (e já antes) pela sua ligação ao PCP.
Freitas Branco, o mais importante compositor português da primeira metade do século XX, só agora tem a atenção que merece, mas na Antena 2. Talvez um dia chegue o interesse à televisão. Demora tempo, como a Shostakovich. Para os homens livres, que vivem a sua vida interior em liberdade, a liberdade de se exprimirem tem um preço; e a verdadeira liberdade, que é a liberdade da verdade, essa parece nunca mais chegar.