Abate de três antigas piscinas de Lisboa indigna arquitectos
Obras do modernismo português têm os dias contados. Câmara alega que estão obsoletas e que a sua reabilitação seria impossível ou mais cara do que construí-las de novo, como vai fazer, mas arquitectos defendem a sua manutenção depois de obras de recuperação. No caso de uma delas, a do Campo Grande, de Keil do Amaral, um ex-presidente do Instituto do Património fala mesmo em "atitude criminosa" quando se refere ao seu desaparecimento
Ana Henriques
A anunciada demolição de três antigas piscinas de Lisboa, todas obras do modernismo português construídas na década de 60, está a indignar vários arquitectos, que falam em falta de respeito pelo património por parte da câmara. A autarquia responde que estão obsoletas e que vai construir equipamentos semelhantes no seu lugar. Ontem foi o seu último dia de funcionamento.A demolição que está a provocar mais celeuma é a do Campo Grande, por ter sido desenhada por uma grande figura da arquitectura portuguesa, Keil do Amaral. O ex-presidente do Instituto Português do Património Arquitectónico, João Rodeia, fala mesmo em "atitude criminosa" e em "situação lesa-património". Integrada no jardim que a circunda, a piscina infantil do Campo Grande aparece mencionada em várias obras da especialidade. O livro Os Verdes Anos na Arquitectura Portuguesa dos Anos 50 refere que ela "remata com assinalável qualidade o magistério de Keil nas obras dos espaços verdes que ele deu a Lisboa", ao mesmo tempo que salienta a sua "grande singeleza e modéstia".
As suas pequenas dimensões não impedem que a autora do livro, Ana Tostões, veja nela uma grande obra, até pelas referências que encerra a anteriores fases da obra do arquitecto, "desde o fascínio holandês, homenageado na plasticidade da torre do tratamento da água, à exploração inteligente do material, como na arquitectura popular, passando pelo gosto e pela reinvenção do desenho e do pormenor de construção".
Confrontada com o anunciado abate, Ana Tostões não se conforma. "É incrível. Não percebo como é que querem substituir uma coisa que podia ser recuperada", observa a também coordenadora científica do inventário da arquitectura portuguesa do séc. XX.
Construída em 1963, esta piscina está, como as dos Olivais, que também vão desaparecer, num lamentável estado de degradação. Esse é o principal argumento da autarquia: que são irrecuperáveis, ou que a sua recuperação ficaria ainda mais cara do que uma obra nova. Todos os arquitectos contactados pelo PÚBLICO pensam, contudo, que a solução devia passar precisamente pela reabilitação dos três equipamentos. "Se um dia não conseguirmos reabilitar o Mosteiro dos Jerónimos também vamos destruí-lo?", questiona a crítica de arquitectura Ana Vaz Milheiro. "Estamos a destruir espaços públicos de qualidade com o argumento demagógico e pouco verdadeiro de que não é possível reabilitar", prossegue. "As empresas de construção civil vendem aos nossos políticos estas ideias, porque reabilitar exige técnicos mais qualificados, e eles aderem a elas." Para esta perita, a Câmara de Lisboa devia assumir as suas responsabilidades no estado de degradação a que chegaram as piscinas, todas mandadas construir pela autarquia e por ela geridas. "Em vez de ser a grande defensora deste património, põe a hipótese de o destruir", critica. João Rodeia corrobora: "Quando a câmara invoca a degradação a que chegaram as piscinas está a reconhecer a sua culpa. E esse motivo não é, pelo menos, no caso do Campo Grande, razão válida e suficiente para a demolição."
Embora ciente de que os três equipamentos têm níveis de qualidade distintos, o arquitecto Michel Toussaint acusa a autarquia de ignorância e desrespeito pelo património e de servir os interesses dos construtores civis na construção de obra nova. "Porquê esta vontade de destruição?", pergunta, defendendo igualmente a reabilitação destas obras. "É o que se faz nas cidades civilizadas", acrescenta. Michel Toussaint sublinha o cuidado posto pelos seus autores nestes projectos. Essa é também a opinião do ex-presidente do Instituto do Património: "Os arquitectos desta geração eram pessoas que conheciam bem o seu métier".
Por outro lado, tanto João Rodeia como Ana Vaz Milheiro sublinham o valor das três piscinas para a memória da cidade. Pelos Olivais passaram os grandes nomes da natação portuguesa. Apesar de os seus projectistas, Aníbal Barros da Fonseca e Eduardo Paiva Lopes, serem nomes de segunda linha, o enorme complexo desportivo em que se inserem confere-lhes uma importância especial. Além das duas piscinas ao ar livre, uma de saltos e outra "olímpica" - dizem os técnicos camarários que lhe falta quase um metro à largura para poder usar de facto essa designação -, o recinto integra vários campos de jogos, bancadas, um bar, saunas, um ginásio forrado a madeira e uma sala de judo, além de uma piscina infantil.
Fissuras nas piscinas, talvez provocadas por deslizamentos nos terrenos em que elas assentam, fizeram com que de há três anos a esta parte tenham estado sempre vazias. Quem ultimamente tem ido nadar ao complexo desportivo de 1967, cujo tamanho duplica a Praça do Comércio, usa uma piscina interior construída há poucos anos.
A dois dias do encerramento os funcionários que trabalham no local ainda não acreditavam no encerramento definitivo. "Quando penso nisso não consigo evitar as lágrimas", dizia a funcionária mais antiga. "Chegámos a ter aqui 35 qualidades diferentes de bilhetes: uns para a sauna, outros para as massagens, para o duche escocês, para o ténis... Quando havia campeonatos internacionais, chegávamos a estar abertos até à meia-noite e uma cabine de som espalhava música por todo o recinto."
Um dos autores da Gulbenkian, Alberto José Pessoa, é o responsável pelo traço da piscina do Areeiro, junto à Av. de Roma, que data de 1966 e está integrada no inventário do património português do séc. XX. Na sua inauguração, em que, tal como na das piscinas dos Olivais, o então Presidente da República Américo Tomás marcou presença, os convidados tiveram oportunidade de assistir a um espectáculo com bailado aquático e saltos humorísticos, protagonizados por nadadores do Pedrouços e do Algés e Dafundo.
Quer no caso do Areeiro, quer no dos Olivais, João Rodeia fala em "atitude muito precipitada" por parte da autarquia, que, no seu entender, deveria promover alguma reflexão sobre o assunto. "Como é que em 2006 ainda se pensa desta forma? Parece que estamos nos anos 70", comenta. Apesar de nenhuma das piscinas estar classificada pelo Instituto Português do Património Arquitectónico, um estatuto que as poderia salvaguardar, o secretário-geral da Ordem dos Arquitectos, João Afonso, pensa que não está tudo perdido: "A Câmara de Lisboa avaliou mal a sua decisão. Mas ainda está a tempo de voltar atrás."