Naguib Mahfouz (1911-2006) O homem-Egipto
Foi o primeiro - e, por enquanto, o único - árabe a receber o Nobel da Literatura, em 1988. Mas nunca foi só um escritor: foi a reserva moral do Egipto no século em que o Mundo, e em particular o mundo árabe, fez todas as revoluções culturais (e nem sempre se refez delas). Ele não aceitaria ser menos do que isso. Por Inês Nadais
O Ladrão e os Cães (Linda-a-Velha, Livro Aberto, 1989)Em Busca (Lisboa, Editorial Caminho, 1989)
A Viela de Midaq (Lisboa, Editorial Caminho, 1990)
As Noites das Mil e Uma Noites
(Lisboa, Difel, 1998)
Vivia para escrever (mas não escrevia porque era esse o seu metabolismo, escrevia porque era esse o seu imperativo categórico), e, por isso, os últimos dias fizeram menos sentido: não se levantou às 5h00 para ler os jornais, não se sentou na sua mesa favorita do Café Ali Baba a tomar a imprescindível chávena de café sem açúcar, não ouviu o muezzin a chamá-lo para a oração do pôr-do-sol e não interrompeu a sesta à mesma hora de sempre para escrever.
Naguib Mahfouz, o único árabe a receber o Nobel da Literatura, morreu ontem, aos 94 anos, no Hospital Policial de Al-Agouza, no Cairo, mesmo ao lado da casa que só abandonava no Verão para ir descansar a Alexandria (o Egipto foi-lhe sempre suficiente: só saiu do país para ir ao Iémen e à Jugoslávia e nem o Prémio Nobel o fez correr para o estrangeiro). A sua última obra - Seventh Heaven, uma colectânea de contos sobre a vida além da morte - foi publicada em 2005: "Quero acreditar que alguma coisa de bom me vai acontecer depois de morrer", explicou na altura.
Tinha dito que, se alguma vez a vontade de escrever o abandonasse, queria que fosse esse o seu último dia, e estava a viver o seu último dia desde 19 de Julho. 42 dias depois de ter dado entrada no hospital com ferimentos profundos na cabeça, na sequência de uma queda aparatosa durante um passeio nocturno, o escritor egípcio sucumbiu a complicações pulmonares e renais que se foram agravando ao longo do internamento e a duas paragens cardíacas.
Deixou cerca de 40 romances, mais de 350 contos, 30 argumentos para cinema e diversas peças de teatro, muitos dos quais continuam interditados em vários países do mundo árabe - uma obra imensa, à escala do imenso século XX egípcio. Ele não foi só um dos seus mais singulares cronistas: foi uma das suas mais incansáveis reservas morais. Também por isso, terá hoje direito a um funeral de Estado.
Natural de um dos mais densos e carismáticos bairros cairotas, Gamaliya, onde nasceu, a 11 de Dezembro de 1911, Naguib Mahfouz fez do Egipto, mas sobretudo do Cairo, o seu mundo - um mundo tão miserável quanto prodigioso, tão transitório quanto primordial. "Enquanto local geográfico e enquanto História, o Egipto de Mahfouz não tem paralelo em nenhuma outra parte do Mundo. Mais velho do que a própria História, geograficamente incomparável devido ao Nilo e ao seu vale fértil, o Egipto de Mahfouz é uma imensa acumulação de acontecimentos, estendendo-se no tempo por milhares de anos e mantendo, apesar da assombrosa variedade dos seus governantes, regimes, religiões e raças, uma inconfundível identidade", notou o ensaísta e crítico literário Edward Said. O mérito de Mahfouz, sublinhou o comité que lhe entregou o Nobel da Literatura em 1988, foi justamente o de transformar essa inimitável contingência - um país e a sua circunstância - numa verdade universal.
Ele achou sempre que o verdadeiro vencedor era a língua árabe - mesmo que parte do mundo árabe, em retaliação pelo apoio explícito de Mahfouz aos primeiros acordos de Camp David (1978), tenha boicotado a circulação dos livros do seu único Nobel. Houve outras circunstâncias em que o Cairo - para todos os efeitos, o mundo, tal como o conheceu - se virou contra ele: em 1959, quando publicou por episódios, no diário Al-Ahram (que, até ontem, continuou a imprimir semanalmente os seus diálogos com o jornalista Mohamad Salmawy, o mesmo que leu o discurso de Mahfouz em Estocolmo), o romance The Children of Gebelaawi, considerado blasfemo pelos líderes da Universidade islâmica de Al-Azhar e banido até hoje em todo o mundo árabe, Egipto incluído, à excepção do Líbano; em 1989, quando condenou a fatwa imposta a Salman Rushdie pelo ayatollah Khomeini e se tornou um alvo a abater para o sheik Omar Abdel-Rahman; e em 1994, quando um integrista islâmico o apunhalou no pescoço com uma faca de cozinha que lhe deixou o braço direito paralisado. Nada disso - nem o facto de, aos 83 anos, ter tido de voltar a aprender a escrever - fez dele um pessimista. Era isso que era mais "notável, mas também mais pungente nele", escreveu Edward Said: "O facto de conseguir manter a sua crença liberal, oitocentista, numa sociedade decente para o Egipto, apesar de todas as evidências em contrário".
Foi em 1936 que decidiu tornar-se escritor profissional. Tinha o que era preciso: essas matérias-primas bigger than life que eram a vida nos bairros populares do Cairo (morou com os pais em Gamaliya e Abbasiya) e a poderosa herança da civilização faraónica, que revisitou nas suas primeiras obras, os romances históricos Abath Al Aqdar (1939), Radubis (1943) e Kifah Tibah (1944). Um ano depois, abandonou esse programa - planeava escrever 40 romances históricos sobre o Antigo Egipto -, porque o Egipto que tinha à frente, o Egipto que tinha pressa de chegar à Revolução de Julho de 1952, se tinha tornado violentamente pertinente. Os seus primeiros romances sobre o Cairo real - Khan al-Khalili (1945), A Viela de Midaq (1947) e, sobretudo, a mítica Trilogia do Cairo (1952) - esgotaram-no ao ponto de ter estado sem escrever entre 1952 e 1959, profundamente desiludido com o regime de Nasser. Regressou ao seu alter-ego de funcionário público (foi burocrata entre 1939 e 1972, como funcionário do Ministério dos Assuntos Islâmicos, director do departamento de censura no Gabinete das Artes, director da Fundação de Apoio ao Cinema e consultor do Ministério da Cultura para as questões do cinema), mas, em 1959, já estava a publicar The Children of Gebelaawi, até hoje o seu romance mais polémico. Mesmo os egípcios que nunca o leram acabaram por conhecer as suas histórias através do cinema: escreveu vários argumentos e alguns dos seus romances acabaram por dar filmes (Jorge Fons filmou El Callejón de los Milagros a partir de A Viela de Midaq e Arturo Ripstein adaptou The Beginning and the End).
Um homem do povoQuando recebeu o Nobel - com 30 anos de atraso -, o mundo ocidental praticamente nunca tinha ouvido falar dele. Não quis ter a maçada de vestir um smoking para cumprimentar o rei Gustavo, mas enviou um discurso violentamente político em que intimou a Europa, "o mundo civilizado", a salvar a África do Sul do apartheid, o continente africano da fome, os palestinianos "das balas e da tortura", Israel "de profanar a sua grandiosa herança cultural" e os países endividados "das rígidas leis da economia". "Poderão estar a pensar: este homem vem do Terceiro Mundo, como é que ele teve paz de espírito para escrever histórias? Bom, a arte, ao contrário da vida, é generosa", mandou dizer. As filhas levaram sapatos de salto alto à cerimónia: às vezes, Mahfouz dizia que escrevia para elas poderem calçar-se bem. Metade do valor do prémio foi para elas; um quarto foi entregue à causa palestiniana.
Mesmo depois do Nobel, nunca deixou de ser um homem do povo: apesar das câmaras e dos jornalistas ("Estou praticamente ao serviço do Sr. Nobel. Tenho de receber todas as pessoas que ele envia ao meu encontro"), continuou a vestir o seu sobretudo coçado e a usar os transportes públicos. Tal como Ahmad, a personagem da Trilogia do Cairo que era o seu alter-ego, não aceitaria menos do que isso: "Creio na vida e no povo. Sinto-me obrigado a ser o porta-voz dos seus mais elevados ideais: recuar perante essa tarefa seria uma infame renúncia ao dever".