Quem matou a "Dália Negra"?
Um assassínio que é a "quintessência de Los Angeles", como lhe chamou o escritor James Ellroy, autor do romance que reinventa o caso da morte violenta de uma aspirante a actriz nos anos 1940. Brian de Palma filmou The Black Dahlia, que abre hoje em competição a 63.ª edição de Veneza.
Do nosso enviado Vasco Câmara, em Veneza
Uma aspirante a actriz foi de encontro ao seu pesadelo na cidade dos anjos. O corpo apareceu decepado num baldio em 1947 - torso e membros separados, boca rasgada até às orelhas - e Elizabeth Short passou a ser conhecida como a "Dália Negra" - os jornais trataram de mitificar, foram procurar inspiração a nomes de clubes nocturnos nos film noir da época. Durante semanas, uma cidade curiosa e aterrorizada assistiu à maior caça ao homem que se viu em terras californianas, com dúzias de falsas acusações e suspeitos interrogados. Neste jogo do gato e do rato, cartas provocatórias chegavam à polícia, escritas pelo assassino, que enviou também a um jornal local a agenda pessoal de Short.
Nunca foi encontrado o autor da morte de Elizabeth Short e nos anos 1950 o caso foi encerrado.
"Ela é um fantasma, como uma página em branco que regista os nossos medos e fantasmas", disse o escritor norte-americano James Ellroy. "Uma Mona Lisa do pós-guerra, a quintessência de LA." Não foi por acaso que Ellroy dedicou ao caso o primeiro dos quatro volumes do chamado Quarteto de LA - A Dália Negra (1987), O Grande Desconhecido (1988), Los Angeles Confidencial (1990) e White Jazz (1992) -, livros em que reinventa Los Angeles do pós-guerra como mancha de corrupção, logro, sonhos desfeitos, onde a beleza não se fazia pagar por mais do que uns cêntimos.
Foi com a entusiasmada bênção de Ellroy (logo ele, habitualmente tão cínico nas suas declarações) que Brian de Palma foi escolhido como realizador para a adaptação cinematográfica. O filme abre hoje, em competição, a 63.ª edição do Festival de Cinema de Veneza. Josh Harnett e Aaron Eckhart interpretam os dois polícias que Ellroy ficcionou a partir do caso verídico: amigos e rivais, apaixonados pela mesma mulher (Scarlett Johansson), obcecados pela Dália Negra (Mia Kershner) e pelos seus simulacros (Hillary Swank interpreta uma femme fatale que se veste como a vítima; segundo o realizador, vai ver-se uma actriz como nunca foi vista antes).
Outros produtos de Hollywood
Hollywood e os seus desastres humanos é ainda o tema de Hollywoodland, de Allen Coluter, um dos cinco americanos em competição. Desta vez, a morte é a do actor George Reeves, o Superman da TV. A tese oficial é que se suicidou, em 1959, mas rumores que persistem, sobre um affaire entre o actor e a mulher de um patrão do estúdio, fazem deste outro dos casos por deslindar nas colinas de LA.
Alfonso Cuarón, Emilio Estevez - com Bobby, filme coral passado no hotel Ambassador de Los Angeles no dia do assassinato de Robert Kennedy - e Darren Aronofsky (ver caixa) são os outros três americanos que levam a Veneza produto dos estúdios.
Não tanto pela quantidade mas pelo calibre dos nomes envolvidos, o continente asiático (zona do globo cinematograficamente cara ao director da mostra, Marco Muller) evidencia-se na competição: dois títulos japoneses, um dos quais uma animação; de Hong Kong, Johnnie To, com Exiles - passado em Macau, antes do regresso do território à China, com um grupo de killers suspensos numa malaise existencial; de Taiwan e da Tailândia, Tsai Ming-liang (I Don"t Want to Sleep Alone) e Apichatpong Weerasethakul (Syndromes and a Century), com filmes parcialmente financiados pelo New Crowned Hope, o festival que o maestro e encenador Peter Sellars foi convidado a criar para Viena Ano Mozart 2006.
Ainda em competição - júri presidido por Catherine Deneuve, integrando o produtor português Paulo Branco e os realizadores Bigas Luna, Cameron Crowe, Michele Placido e Park Chan-wook - estão os últimos filmes de Gianni Amelio, Stephen Frears (The Queen - ver caixa), Benoît Jacquot, Alain Resnais (Private Fears in Public Places, tal como Smoking/ No Smoking fascinado pelas maquinações de uma peça de Alan Ayckbourn), Jean-Marie Straub e Danièle Huillet (Quei loro Incontri) ou Paul Verhoeven (o regresso à Holanda natal do realizador de Instinto Fatal).
Fora de competição encontramos Kenneth Branagh (A Flauta Mágica), Manoel de Oliveira, David Lynch, Oliver Stone (ver caixas). Na secção Horizontes, que enquadra objectos de formato exploratório, Ethan Hawke, actor, prossegue a sua carreira de realizador (The Hottest State), o americano Spike Lee e o chinês Jia Zhangke aparecem no registo documental (com, respectivamente, When the Leeves Broke. A Requiem in Four Acts e Dong). Na competição de curtas está um português: Marco Martins, com Um Ano Mais Longo.