Miles Davis Ainda cool ao fim de todos estes anos
Aniversário é o pretexto para o lançamento de uma colectânea e para recordar o rapaz que jurou tocar trompete "sempre melhor do que qualquer branco"
Conta-se que um dia Miles Davis foi convidado para a Casa Branca para uma festa em honra de Ray Charles. Irritado com o que a mulher de um político dizia sobre jazz, respondeu-lhe mal. Ela contra-atacou: "E você, o que fez de tão importante na vida?". E Miles: "Transformei a história da música cinco ou seis vezes, acho que foi isso que fiz."Todos os que o consideram o grande génio do jazz desde a década de 1940 não hesitariam em concordar. Sem Miles Davis, trompetista, compositor - que, se não tivesse sucumbido a uma pneumonia em 1991, faria este ano 80 anos, data que é pretexto para o lançamento da colectânea Miles Cool & Collected - o jazz não seria o que é. Ele transformou-o uma e outra vez. Garante José Duarte, crítico e divulgador de jazz: "A história de todo o jazz moderno seria diferente se ele não tivesse tocado como tocou."
No documentário editado em DVD, The Miles Davis Story (2002), o pianista Keith Jarrett recorda que uma vez ele lhe perguntou "sabes porque é que já não toco baladas? Porque gosto demasiado de tocar baladas". Jarrett percebeu exactamente o que ele queria dizer: "Acho que Miles preferia ter uma banda que tocasse mal, do que uma que tocasse sempre as mesmas coisas que já sabia tocar bem."
A mudança, a inovação eram obsessões para ele. Mas, ao mesmo tempo, há algo de imutável na sua música, algo que, segundo José Duarte, "o acompanha desde o primeiro solo, em meados dos anos 40, com Charlie Parker, a mesma sonoridade, a mesma maneira original de utilizar o tempo que corre". É por isso que, diz, "na carreira de Miles o que mudou foram os cenários: os músicos que o acompanhavam, as próprias roupas, que foram mudando conforme as épocas".
Mas a sonoridade está lá. Está na "forma genial como utiliza os silêncios, ao mesmo tempo que é altamente melodioso nas pequenas frases que constrói", e está na "capacidade notável de usar a técnica que tinha, com registos médios, nem muito agudos, nem muito graves, poucas notas, um som liso, sem vibrato, um som que viria depois a chamar-se cool".
E a "personalidade sonora" de Miles está também, continua José Duarte, nos erros. "Não era um grande instrumentista, o que prova que no jazz não interessa saber tocar muito bem um instrumento. Ele fazia erros e publicava-os. Mas o erro só é possível no jazz, é, aliás, um elemento da estética do jazz. Se não se consegue a nota que se quer, ou se repete, ou se usa o erro para inflectir o discurso".
A influência de ParkerMiles era também uma personalidade. Polémico, provocatório, directo, por vezes agressivo - mas sempre cool. "Vi-o pela primeira vez em Paris, em 1961. Muito elegante, muito bonito, entrava, dava o tema e saía. Ficavam os outros músicos em cena e ele só voltava na altura do solo. Era muito inteligente e isso era uma maneira de dar nas vistas. Intrigava o público." Alguns não aceitavam bem essa atitude, consideravam-na um sinal de desprezo pelo público, mas fazia parte dele. "Já viram alguma vez um maestro conduzir virado de frente para o público?", terá perguntado um dia.
Nem sempre foi assim. Quando começou, Miles era um adolescente inseguro, cujo grande sonho era tocar com Charlie Parker. Nascera em 1926, no Illinois, numa família negra de classe média, com um pai dentista e uma mãe música. Antes de fazer 20 anos (mas já pai de uma criança da sua primeira namorada, Irene, que viria a ser mãe de três dos seus quatro filhos) conseguiu convencer o pai a mandá-lo para a Juilliard School of Music, em Nova Iorque, mas rapidamente trocou as aulas por uma "escola" muito mais eficaz: a banda de Parker e Dizzy Gillespie e a descoberta do be bop.
Entre 1949 e 50 fez, com o orquestrador Gil Evans, um disco histórico: Birth of Cool. "Até Miles, todos tocavam como Louis Armstrong", explica José Duarte. Miles quis afastar-se da velocidade do be bop e introduziu um novo estilo, mas o sucesso - sobretudo na Europa, onde foi recebido como uma estrela em Paris e viveu uma grande paixão com a actriz Juliette Greco -, somado ao racismo nos EUA (foi espancado por um polícia à porta de um bar), lançaram-no no consumo de heroína. Começou um período negro, em que chegou a ser preso, e em que a carreira ficou suspensa, e do qual só sairia em 1954.
A segunda metade dos anos 50 marcou o regresso e a época de ouro dos quintetos lendários, o primeiro com o saxofonista John Coltrane, e, já nos anos 60, com outro nome histórico, o saxofonista Wayne Shorter. É de 1959 o disco que mais vendeu em toda a história do jazz: Kind of Blue.
Fascínio pelo rock Nos anos 70, os interesses de Miles começam a desviar-se para o rock e deixa-se fascinar sobretudo por Jimmy Hendrix. "Ele permanece o mesmo, mas as linguagens, as fusões e as confusões que provoca é que diferenciam os vários períodos da sua carreira", segundo José Duarte. A ligação com o rock foi muito polémica, embora tenha sido "o último grande salto qualitativo que o jazz teve".
Se a incursão pelo jazz-rock foi controversa, isso não perturbou Miles que, mais tarde - depois de uma longa ausência, entre 1974 e 1980, devido às drogas e a problemas de saúde -, regressaria com nova provocação, entrando pelo terreno da pop (Michael Jackson, Cindy Lauper).
Antes de morrer, em 1991, voltou a tocar em Portugal. Mas já estava "depauperado", conta José Duarte. Não parecia o mesmo que em 1971, no primeiro festival internacional de jazz em Cascais, exigira uma limousine branca e um motorista branco e que gracejara, dizendo que nenhum era tão branco como ele queria.
Em 91, estava muito doente. Mas era ainda Miles, o rapaz que no liceu sabia que "era o melhor na aula de trompete, mas os prémios iam para os rapazes de olhos azuis", e que por isso decidiu que "tocaria sempre melhor trompete do que qualquer branco".