O último barqueiro do Cais da Bruxa da Gafanha da Encarnação

Indiferente à passagem do tempo, Manuel da Graça, o "Ti Ameixa", continua a ligar as duas margens da ria de Aveiro na sua barca, transportando pessoas e mercadorias.
Por Maria José Santana (texto) e Carla Carvalho Tomás (foto)

Num tempo em que havia poucos carros e em que a actual Ponte da Barra ainda não tinha sido construída, a travessia entre Ílhavo e as praias da Barra e da Costa Nova era feita de barco. Seis embarcações, cada uma com dois tripulantes, ligavam o Cais da Bruxa ao Cais da Costa Nova, transportando roupas, móveis, louças e outros coisas indispensáveis aos veraneantes. Trinta anos depois, só o Ti Ameixa resiste à mudança dos tempos e continua a ligar as duas margens da ria de Aveiro na sua barca. Não porque a actividade seja rentável, mas que a paixão pela ria parece falar mais alto. Assim como o prazer de contactar com pessoas de várias nacionalidades, confessa Manuel da Graça, o último barqueiro do Cais da Bruxa.Todos o conhecem por "Ti Ameixa" por força de uma alcunha que foi atribuída ao seu avô. O apelido tem passado de geração em geração, mas, para alegria de Manuel da Graça, não conseguiu passar para a geração dos filhos. Assume que não gosta da alcunha, mas é o primeiro a reconhecer que, quer no Cais da Bruxa, na Gafanha da Encarnação, quer no Cais da Costa Nova - a partir dos quais assegura o transporte de passageiros -, de nada valerá perguntar-se por Manuel da Graça. E, por mais não goste, o barqueiro tem de continuar a carregar diariamente o peso de uma alcunha que se deve ao facto de o seu avô ter partido uma ameixieira, quando tentava apanhar os seus frutos.
Mas, mais importante do que o nome pelo qual lhe chamam, parece ser a actividade que desenvolve. Dia após dia, em especial no Verão, faz do seu pequeno mercantel o seu modo de vida, assegurando a travessia de passageiros, entre as duas margens da ria, no Canal de Mira. Nos dias que correm, a viagem tens fins quase unicamente e exclusivamente turísticos. Seja para simplesmente apreciar a bela paisagens das duas margens daquele canal, ou para afluir àquele que parece ser um dos pontos de visita obrigatória para quem visita o concelho de Ílhavo. Chama-se "A Bruxa" mas, para desconsolo de uns e agrado de outros, nada tem a ver com práticas esotéricas ou coisas do Além.
"Quando digo que vamos até à Bruxa, há pessoas que querem logo ir porque pensam que é mesmo uma bruxa", relata Manuel da Graça. O barqueiro rapidamente desfaz os equívocos e explica que, afinal, se trata de um café típico, afamado pelo seu "cervejão" e "empalhadas". O porquê do nome? O barqueiro lá explica com a mesma dedicação que vai relatando aos passageiros que visitam a zona pela primeira vez: "Há uns anos, eles tinham lá uma bebida que era tipo jeropiga e alguém que tinha bebido até ficar entornado, veio cá para fora a dizer que aquela bebida parecia que tinha bruxa". O nome ficou e o local parece ser uma referência, especialmente para os que procuram os serviços de Manuel da Graça para passear na ria. Mas tempos houve em que a travessia de barco era uma necessidade, quer para quem precisava de chegar à Costa Nova para vender os seus produtos, quer para os que pretendiam ir para a praia.

Barcos e carros de bois Manuel da Graça fala dessa época passada com tamanhos pormenores e precisão que é fácil concluir que essa altura lhe deixa saudades. "As pessoas chegavam aqui com os carros de bois e passavam de barco para irem para a praia", recorda o barqueiro, a propósito dos tempos em que "não existiam tantos automóveis". Nesses anos, a única ligação por terra era assegurada por uma ponte já desaparecida e que estava edificada no extremo norte da Barra, portanto, mais longínqua para os que pretendiam aceder à Costa Nova.
"Chegaram a estar aqui a trabalhar seis barcos e um total de 12 homens", lembra o barqueiro que herdou a profissão do pai. Começou bem cedo, aos 11 anos, na altura em que "o trabalho das travessias era uma coisa a sério". Aos 21 tornou-se independente: comprou o seu próprio barco e começou a trabalhar sozinho. Durante alguns anos ainda chegou a trabalhar no Porto de Aveiro, mas sempre mantendo a ligação à ria, mais concretamente às travessias de barco. "Vinha aos fins-de-semana e em Agosto", frisa Manuel da Graça, o barqueiro que não esconde ter uma enorme paixão pela ria e pela actividade que desenvolve há cerca de 60 anos.
Actualmente é o único ainda a trabalhar no Canal de Mira e tem pena caso mais ninguém queira abraçar a actividade. "Os clientes estão sempre a dizer-me para arranjar alguém que continue e eu ainda hei-de arranjar", sublinha. Até lá, Manuel da Graça continuará a assegurar a passagem para a outra margem, porque isso lhe dá prazer. "Conhece-se aqui muita gente", remata.

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