MARCELISMO Ou a Primavera incerta
Marcelo Caetano, umas das figuras mais marcantes, até por ter falhado, da direita portuguesa no século XX, nasceu faz hoje 100 anos. Durante muitos anos esperou pela sua vez, mas quando chegou à chefia do Governo, em 1968, o ilustre professor da Faculdade de Direito de Lisboa ainda tentou lançar um conjunto de medidas reformistas, mas já era tarde demais. Pior: supôs que a abertura política e social poderia ser realizada sem romper com os princípios paternalistas, autoritários e corporativistas do regime salazarista. Numa altura em que a questão colonial constrangia qualquer "renovação",
a chamada "Primavera marcelista" duraria pouco, como recordaram ao PÚBLICO quer historiadores, quer antigos membros dos seus governos
e da então Assembleia Nacional. A 25 de Abril de 1974, violando as leis que ele tão bem conhecia, entregou o poder ao general Spínola
e seguiu depois para o Brasil, onde viveu um exílio amargo e quase solitário. Por Maria José Oliveira
ada fazia supor que se dirigisse para o quartel do Carmo. Talvez tivesse julgado, como indicam alguns dos seus antigos colaboradores, que se tratava de um golpe palaciano, que poderia ser esta a oportunidade para solucionar a situação militar em África, que a sua presença evitaria a violência nas ruas. A revolta seria sempre um mal menor. A possível resolução do pesado problema colonial, que se arrastava desde 1961, data da eclosão da guerra no Ultramar, compensaria a capitulação do regime. Nada fazia supor que Marcelo Caetano (Lisboa, 1906 - Rio de Janeiro, 1980) contrariasse as instruções que recebera para agir em caso de emergência - procurar refúgio na messe de Monsanto ou no forte de São Julião da Barra, mas o conselho do homem que o informou do golpe, Silva Pais, director da polícia política, levou-o a meter-se numa ratoeira. Foi talvez a sua última decisão solitária enquanto presidente do Conselho, lugar onde pareceu estar sempre sozinho ao longo dos seis anos do seu consulado.
António de Oliveira Salazar era já uma sombra que depressa se desvanecia quando Marcelo Caetano tomou posse como presidente do Conselho, em 1968. Tinha 62 anos e uma reputação ambivalente: era uma das figuras de proa do Estado Novo (desde os anos 30 que era reconhecido como um dos teóricos do regime), mas a sua actuação após a guerra e, sobretudo, o seu trabalho enquanto ministro da Presidência (1955/58) valeram-lhe a desconfiança das correntes ultramontanas, que não hesitaram em atribuir-lhe o epíteto de "esquerdista". Além disso, os conservadores mantinham ainda a suspeita de que Marcelo poderia ter estado envolvido na tentativa de golpe de Estado protagonizada, em 1961, pelo general Botelho Moniz.
Apesar da discordância da ala salazarista, o Presidente da República, Américo Tomás, escolheu-o para suceder ao "eterno" presidente do Conselho, não sem antes lhe transmitir um "aviso": os militares asseguravam a integridade do seu consulado em troca da manutenção da política gizada por Salazar para o Ultramar.
A questão colonial, que acabaria por precipitar o derrube do regime, apresentou-se desde logo como um constrangimento que aprofundou o cariz tímido da chamada "Primavera marcelista". O "aviso" de Tomás era já o princípio do fim. E Caetano, que durante seis anos contemporizou com os mais diversos sectores nos mais diversos contextos, optou por enveredar "por uma linha mais prudente do que aquilo que teria desejado", nota o historiador Pedro Aires Oliveira, docente da Universidade Nova.
A guerra surgirá sempre como o grande obstáculo aos seus projectos, apesar da abertura e da descompressão política e social verificada entre 1968 e 1971. Medeiros Ferreira, que então exprimiu na revista O Tempo e o Modo a sua descrença na "renovação" proclamada pelo novo presidente do Conselho, aponta uma outra interpretação, defendendo que Caetano encenou uma"comédia de enganos" e soube aproveitar o espartilho imposto pela questão ultramarina: "A guerra colonial servia a alienação das liberdades públicas. Era um pretexto para o regime manter um partido único, a censura, a polícia política e a repressão aos opositores." Neste âmbito, e contrariando aqueles que crêem que Caetano poderia protagonizar uma transição democrática semelhante àquela que ocorreu em Espanha em 1975, o historiador afirma que "dificilmente haveria uma evolução gradual". "A experiência marcelista tinha os seus próprios limites dentro do regime e não o via [a Caetano] com capacidade objectiva para terminar a guerra, fazer a descolonização e democratizar o país", sustenta.
Reformas em tempo de guerra
O reformismo marcelista incluiu meras mudanças de nomenclatura (a União Nacional passou a chamar-se Acção Nacional Popular e a PIDE foi rebaptizada com o nome de Direcção-Geral de Segurança), mas os primeiros anos de governação de Caetano reproduziram alguns sinais de ruptura com a decrepitude do regime salazarista. Marcelo autorizou o regresso ao país do bispo do Porto, António Ferreira Gomes, e de Mário Soares, promoveu o abrandamento da censura, assinou uma nova legislação sindical (as direcções sindicais dispensavam a homologação ministerial), criou a ADSE, alargou a previdência aos trabalhadores rurais, permitiu a constituição da SEDES (Sociedade de Estudos para o Desenvolvimento Económico e Social) e consentiu uma reforma do ensino, entre outras medidas.
Aproveitando o desenvolvimento económico que "andava a par e passo com a guerra colonial", nota Manuel de Lucena, investigador do Instituto de Ciências Sociais, Caetano expande a sua veia modernizadora e de pendor liberalizante à indústria e à economia: conseguiu para Portugal o estatuto de membro associado do Mercado Comum, impulsionou o projecto petroquímico de Sines, lançou os concursos públicos para a adjudicação da obra do Alqueva e do novo aeroporto de Lisboa (situado no Montijo) e ajudou a catapultar a Lisnave para um lugar de proeminência mundial. "Para a nossa dimensão era um conjunto de projectos gigantesco", salienta João Salgueiro, subsecretário de Estado do Planeamento Económico do Governo de Caetano.
Embora não se enquadrassem nos padrões das democracias ocidentais, as eleições de 1969 contribuíram também para melhor definir o distanciamento com o estilo e os tempos de Salazar. A eleição dos deputados da chamada "ala liberal", que se candidataram como independentes nas listas da União Nacional, a autorização do II Congresso Republicano, em Aveiro, e a demarcação das oposições com vista ao acto eleitoral (os socialistas criam a Comissão Eleitoral de Unidade Democrática e a esquerda independente, os comunistas e católicos progressistas reúnem-se na Comissão Democrática Eleitoral) permitiram a realização de um debate inédito no Estado Novo. "Antecipávamos a possibilidade de transição para a democracia através de reformas democráticas realizadas a partir das instituições do regime", explica Mota Amaral, antigo deputado "liberal". Partilhando a bancada parlamentar com Sá Carneiro, Pinto Balsemão, Miller Guerra, Magalhães Mota e Pinto Leite, entre outros "liberais", Mota Amaral acreditava então que a ""Primavera marcelista" daria os seus frutos de democracia e desenvolvimento".
Um ano depois, em 1970, o imobilismo tornou-se evidente. Marcelo chumba o projecto de revisão constitucional dos "liberais", que previa a descolonização e o fim da ditadura, e Sá Carneiro é o primeiro deputado a abandonar a Assembleia Nacional. Outros seguirão o seu exemplo, desiludidos com o rumo do "diálogo" entre Marcelo e as correntes mais reformistas do regime. Um ano antes, João Salgueiro começou a ter "dúvidas" e a ficar impaciente com o ritmo "lento" da liberalização económica. Pediu a demissão do Governo.
Pedro Aires Oliveira afirma ser possível que Marcelo "acreditasse que, a longo prazo, o progresso económico favorecesse a emergência de uma classe média suficientemente educada para suportar um regime moderadamente democrático e responsável". Contudo, "não dispunha ilimitadamente do factor tempo".
Caetano não gostava de arriscar, apesar do "vazio de ideias" que lhe permitia isso mesmo, diz Medeiros Ferreira. Manuel de Lucena, que entende que o sucessor de Salazar "tentou passar de um corporativismo autoritário e fascizante para um corporativismo consensual e liberalizante", justifica essa falta de ousadia com a "formação legalista" de Marcelo. Mas a explicação poderá também residir num "conflito interior entre o coração e a razão", como sustenta José Veiga Simão, ministro da Educação entre 1970 e 1974: "O coração era conservador, a razão apontava para a necessidade urgente de mudança. Nos momentos difíceis o coração venceu a razão."
Um homem cada vez mais sóEm 1972 a guerra continuava a travar-se nas três frentes (Moçambique, Angola e Guiné). A publicitação das tentativas do Governo em dar uma autonomia progressiva à política africana não calava as vozes da contestação, que se faziam ouvir não apenas no meio universitário como também nos atentados bombistas da Acção Revolucionária Armada (ARA) e das Brigadas Revolucionárias (BR). Caetano caminhava a passos largos para o isolamento. Por um lado, "sobrevalorizava o poder" dos sectores ultramontanos, afirma Lucena, e, por outro, nada fazia para recuperar a confiança das alas mais dinâmicas da sociedade portuguesa.
A recusa de Marcelo em candidatar-se à Presidência da República (Lucena crê que este foi um dos motivos da dissidência de Sá Carneiro) e a reeleição de Américo Tomás traduziram-se no "canto do cisne" do marcelismo. A decisão de reconduzir o almirante na chefia do Estado continua ainda hoje a ser lida como uma das actuações mais intrigantes de Caetano. Para Pedro Aires Oliveira foi "a última grande oportunidade perdida". "Se Marcelo se tivesse candidato a Presidente, como vários dos seus apoiantes o exortaram a fazer e como ele próprio tinha incentivado Salazar a fazer nos anos 50, isso ter-lhe-ia permitido nomear um primeiro-ministro da sua confiança, que por sua vez governaria sem o receio de ser demitido por quebrar um dos tabus dos sectores mais integristas do regime", argumenta o historiador.
Um ano antes do 25 de Abril, Caetano está cada vez mais isolado. Mas recusa ver isso e nas eleições legislativas de 1973 utiliza o slogan, já sem sentido, de "progresso em paz". Até ao 25 de Abril um atropelo de episódios, nomeadamente o "golpe das Caldas" (16 de Março de 1974) e a publicação do livro Portugal e o Futuro, do general António de Spínola, agudizam a sua precária situação.
Marcelo insiste em dramatizar os acontecimentos - após a publicação do livro de Spínola pede a demissão a Tomás e reitera o pedido quando o chefe de Estado exige a exoneração de Costa Gomes e de Spínola dos cargos de chefe e vice-chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, respectivamente. Face à recusa de Tomás, Caetano pede, num gesto teatral, uma moção de confiança à Assembleia Nacional. E apesar de provavelmente saber da existência do Movimento das Forças Armadas e da iminência de um levantamento militar, prefere manter a falsa imagem de um líder indemne e que parecia acreditar ter ainda apoio popular. Conserva-a até ao fim.