FARINELLI O último a ser exumado

Será o túmulo do primeiro rei de Portugal aberto para se conhecerem segredos de D. Afonso Henriques? Falta uma decisão oficial. Em todo o mundo, muitas personagens célebres foram investigadas pelas técnicas modernas das ciências forenses, como o ADN e a tomografia axial computorizada, ou pelos métodos mais clássicos da antropologia biológica, como o estudo dos ossos para calcular a estatura, a idade da morte ou encontrar sinais de doenças. O objectivo é saber como viveram ou morreram. Ficam aqui oito histórias, com cabelos, esqueletos de um lado para o outro, arsénio, conspirações, assassinatos e polémica à mistura. Por Teresa Firmino

Não faltam artigos científicos a esmiuçar a doença que terá provocado a morte de Wolfgang Mozart com 35 anos. Um dos problemas é que não lhe fizeram uma autópsia, o outro é que as descrições que chegaram até hoje são em segunda mão. Por isso, os cientistas não conseguem pôr-se de acordo. Como se não bastasse de mistério, há a história de um crânio exumado em 1801. Quando morreu, era vulgar os mortos serem enterrados em valas comuns, e foi isso que aconteceu com Mozart. O corpo foi depositado no cemitério de S.Marco, em Viena, e a sepultura terá sido reutilizada. A lenda diz que, dez anos depois, o coveiro Joseph Rothmayer resgatou o crânio de Mozart da vala comum. Em 1902, foi oferecido à Fundação Mozarteum.
Por ocasião dos 250 anos do nascimento de Mozart, a 27 de Janeiro deste ano, foram revelados os últimos estudos genéticos ao crânio. E continua por provar que é do compositor, afirmava um documentário transmitido pela televisão austríaca ORF.
Cientistas do Instituto de Medicina Forense de Innsbruck, na Áustria, e do Laboratório de Identificação por ADN das Forças Armadas dos EUA exumaram os restos mortais da avó materna e da sobrinha de Mozart, num jazigo da família no cemitério de São Sebastião, Salzburgo. Foi impossível determinar a autenticidade do crânio, porque, afinal, nenhum dos ossos tem qualquer parentesco genético. "Neste momento, o mistério do crânio é ainda maior", dizia, segundo a BBC on-line, o líder da equipa, Walter Parson, patologista forense da Universidade de Innsbruck.
O "castrato" Carlo Broschi, aliás Farinelli, aparece nos retratos oficiais sempre como um grande cavalheiro
Em 1985, foram exumados no Brasil os restos mortais pertencentes, alegadamente, a Josef Mengele, o médico do campo de concentração de Auschwitz, conhecido por Anjo da Morte. Tinha morrido em 1979, devido a um acidente vascular enquanto nadava, e foi enterrado como Wolfgang Gerhard, perto de São Paulo.
As dúvidas se os restos exumados seriam mesmo de Mengele, que fugiu da Alemanha, persistiram até que, em 1992, foi aplicada uma técnica descoberta havia poucos anos - as impressões digitais genéticas. Tal como uma dedada, certas zonas do ADN altamente repetitivas são únicas de cada pessoa, algo que Alec Jeffreys, da Universidade de Leicester, no Reino Unido, descobriu em 1984 e que hoje tem uma infinidade de aplicações, desde os testes de paternidade até às investigações criminais.
Alec Jeffreys comparou o ADN do suposto Mengele com o do filho e o da mulher, que viviam na Alemanha. O ADN de Mengele estava bastante degradado, mas outra técnica desenvolvida em 1985 (a reacção em cadeia da polimerase) permitiu fazer várias cópias da molécula da vida para análise. Num artigo científico publicado na revista Forensic Science International, Jeffreys concluiu que os ossos eram mesmo do criminoso de guerra nazi.
Há alguns dias, uma equipa de cientistas exumou os restos mortais de Farinelli, o mais célebre dos "castrati", para estudar os efeitos da castração nos cantores de ópera italiana durante os séculos XVII e XVIII.
Por ano, chegaram a ser castrados quatro mil rapazes com aptidão para o canto, geralmente de famílias pobres, para que pudessem conservar as vozes muito agudas, ao mesmo tempo que adquiriam o poder de respiração de um corpo masculino. Carlo Broschi, conhecido por Farinelli (1705-1782), fez carreira entre 1720 e 1737, com bastante sucesso em Itália, Inglaterra e Espanha. O último, Alessandro Moreschi, foi o único a ter a voz gravada, em 1902 e 1904.
A 12 de Julho, a equipa de Carlo Vitale, do Centro de Estudos Farinelli, recuperou os restos mortais do cantor e da sua sobrinha, no cemitério de Certosa, em Bolonha, descobertos há pouco tempo num túmulo com um epitáfio em latim. "Estão num estado de preservação razoável e os cientistas dizem que é possível fazer algum trabalho", referia Carlo Vitale, citado pela Reuters.
Levaram-nos para a Universidade de Bolonha, onde vão ser estudados por vários cientistas, incluindo especialistas em acústica, interessados em descobrir o que dava aos "castrati" a extraordinária capacidade vocal. "É o único esqueleto que temos de um", sublinhou Nicholas Clapton, especialista britânico em "castrati". "Queremos saber se eram como as caricaturas da altura os representavam, altos e desengonçados, ou com peitos de mulher e nádegas grandes, ou grandes cavalheiros, como Farinelli aparece nos retratos oficiais."
Do faraó-menino ficou a saber-se
que morreu por volta dos 19 anos, mas não se confirmou que
foi assassinado
A intoxicação crónica com chumbo pode explicar o seu longo historial de doenças, mas dificilmente terá sido responsável pela surdez do compositor
Parte do mistério do assassínio dos Romanov está esclarecido. Nicolau II, cuja família governou a Rússia durante 300 anos, abdicou em 1917. Isso não o poupou, nem à czarina Alexandra e aos seus cinco filhos, exilados perto da cidade de Ekaterinburg, na Sibéria, de serem mortos em 1918, durante a revolução bolchevique.
Em Julho de 1991 exumaram-se ossos de nove esqueletos de uma vala comum perto de Ekaterinburg. Pensou-se que seriam de Nicolau, de Alexandra, de três das filhas, do médico real e de três empregados (faltavam os restos do príncipe Alexandre e de uma das princesas). Três anos depois, a equipa de Peter Gill, do Serviço de Ciências Forenses, do Reino Unido, e de Pavel Ivanov, do Instituto de Biologia Molecular Engelhardt, na Rússia, publicou na revista Nature Genetics o resultado das análises ao ADN das mitocôndrias, estruturas que estão fora do núcleo das células e cujos genes são apenas transmitidos pela mãe.
Concluíram, por um lado, que o ADN mitocondrial da czarina apresentava coincidências não só com o das três crianças, mas ainda com o de um parente vivo, o Príncipe Filipe da Grã-Bretanha, duque de Edimburgo. E que o do czar também tinha aspectos coincidentes com o de dois parentes vivos de Nicolau II, pela parte materna. "Concluímos que as provas de ADN fundamentam a hipótese de os restos mortais serem da família Romanov", escreviam.
Mas, no caso de Nicolau II, o facto de a coincidência com os parentes vivos não ser tão assim inquestionável levou o governo russo a pedir uma análise também aos restos mortais do irmão de Nicolau II, Georgi Romanov. Em 1996, a equipa de Pavel Ivanov anunciava que o ADN mitocondrial de ambos coincidia.
Em 1998, os Romanov e os seus quatro criados foram sepultados na Catedral de São Pedro e São Paulo, em São Petersburgo, numa cerimónia a que assistiu o Presidente da Rússia (Boris Ieltsin). Oitenta anos depois da execução da família, parte do caso foi dado por encerrado. Mas estão por encontrar os restos mortais do príncipe Alexandre e há dúvidas quanto à identidade de duas das princesas sepultadas: é Maria ou Anastácia?
Mozart morreu em 1791. Terá mesmo o coveiro Rothmayer recuperado o seu crânio, dez anos depois, de uma
vala comum?
TUTANKHAMON
Rosto de criança

Há pouco tempo, o mundo pôde ver como seriam as feições de Tutankhamon - porque a múmia de um dos faraós mais conhecidos fez uma TAC, para reconstituir a sua cara a três dimensões. Como mostra a foto, tinha um rosto infantil, numa mistura de feições masculinas e femininas, idênticas às da sua máscara fúnebre de ouro, as faces redondas e uma fenda no palato, que não era visível exteriormente.
A reconstituição do rosto de Tutankhamon, que governou o Egipto há cerca de 3300 anos, foi revelada em Maio de 2005. Correu mundo. Além de ter sido o primeiro túmulo intacto de um faraó a ser descoberto, em 1922, pelo britânico Howard Carter, a riqueza de ouro e de artefactos artísticos tornaram-no famoso.
Em Janeiro de 2005, a equipa de Zahi Hawass, o secretário-geral do Conselho Superior de Antiguidades do Egipto, abriu a cobertura de pedra do sarcófago de Tutankhamon, no Vale dos Reis, para retirar de lá a caixa de madeira que contém a múmia. Raramente vista - o túmulo não era aberto desde 1978 e, antes, só tinha havido autorização para examiná-la e fazer radiografias em 1968 -, a múmia foi levada para a rua, onde a esperava uma máquina de TAC dentro de uma carrinha. Ainda na caixa de madeira, foi enfiada 15 minutos na TAC, para se fazerem mais de 1700 imagens de várias perspectivas, que foram trabalhadas por três equipas (egípcia, francesa e norte-americana).
Os franceses e os norte-americanos trabalharam sobre um molde de plástico; os egípcios construíram o seu modelo com os dados da TAC. Todos completaram a imagem do rosto com argila, para reconstituir as partes moles, como os lábios, as bochechas ou o nariz. Apesar de os norte-americanos não saberem que era o crânio de Tutankhamon, os resultados das três equipas assemelharam-se muito quanto à forma do rosto, dos olhos e as proporções do crânio (o nariz foi uma das principais diferenças, com a equipa egípcia a fazê-lo mais proeminente).
É uma reconstituição deste género que a antropóloga forense Eugénia Cunha, da Universidade de Coimbra, pretende fazer do rosto de D. Afonso Henriques, do qual não há nenhum retrato ou escultura da época.
A TAC, um exame mais sofisticado do que uma simples radiografia, não confirmou que o rei-menino, que subiu ao trono aos nove anos, por volta de 1354 a.C., e morreu nove anos depois, foi assassinado. Não se encontraram sinais de um golpe na cabeça, hipótese avançada com base nas radiografias de 1968. Encontrou-se, no entanto, uma fractura grave na perna esquerda, por cima do joelho, que pode ter grangrenado. "É possível que a ferida tenha infectado e causado a morte do faraó", disse Hawass. Ficou-se a saber ainda que Tutankhamon morreu por volta dos 19 anos e não apresentava sinais de má nutrição.
Mesmo que Napoleão não tivesse sido envenenado com arsénio, como sugerem as provas apresentadas em 2001 por cientistas franceses, o certo é que não deveria ter muito mais tempo de vida: tinha um cancro no estômago, que foi a causa oficial da morte.
Foram analisadas mechas de cabelo de Napoleão, preservadas desde a sua morte em 1821 na ilha de Santa Helena, onde foi exilado pelos britânicos depois de ter perdido a batalha de Waterloo. "As análises mostram que houve uma grande exposição - sublinho, uma grande exposição - ao arsénio", dizia então o toxicólogo Pascal Kintz, do Instituto de Medicina Legal de Estrasburgo. Numa das amostras, a concentração de arsénio era de 38 nanogramas por miligrama de cabelo, quando o valor limite é de um nanograma. Tais concentrações, frisava o investigador, não poderiam ter uma causa menos sinistra do que o assassinato, como a contaminação da água.
Outra mecha recolhida cinco anos antes da morte de Napoleão revelou também contaminação por arsénio. Por isso, Pascal Kintz diz que não há dúvida de que se tratou de uma intoxicação crónica por arsénio.
Para o toxicólogo Paul Fornes, da equipa de Kintz, a causa oficial da morte não ficou fundamentada. "As lesões no estômago descritas por Francesco Antommarchi, o médico que fez a autópsia, não foram a causa da morte." Seja como for, pensa-se que Napoleão sofria de cancro gástrico hereditário, uma forma bastante rara, que aparece por volta dos 20, 30 ou 40 anos. Isto porque se suspeita de que o pai de Napoleão, o avô e quatro dos seus sete irmãos morreram de cancro no estômago.
Porém, saiu reforçada a hipótese de que Napoleão foi assassinado, como defendia o promotor desta investigação, o canadiano Ben Wieder, da Sociedade Internacional Napoleónica, em Montreal. A história das análises aos cabelos de Napoleão é longa: já em 1964, a Universidade de Glasgow, na Escócia, demonstrou a existência de concentrações elevadas de arsénio. Mas sempre foi controverso se se estava perante um crime e, nesse caso, se teria sido cometido pelos carcereiros ou por alguém da sua comitiva. Muitos historiadores defendem que não houve crime e duvidam da autenticidade dos cabelos.
Uma maneira tirar as teimas seria fazer testes de ADN aos restos mortais de Napoleão em Paris, mas a França recusou-o, em 2002. Há também quem duvide de que os restos mortais devolvidos em 1840, 19 anos após o enterro em Santa Helena, sejam de Napoleão.
O Governo francês recusou em 2002 a realização de testes de ADN aos restos mortais de Napoleão; mas serão mesmo
os dele?
Por si só, os cabelos de Ludwig van Beethoven dão uma história com peripécias quanto baste. As provas de que o compositor alemão tinha uma intoxicação crónica por chumbo, divulgadas em 2000, apimentaram mais a história dos seus problemas de saúde e da sua morte aos 56 anos, em 1827.
Na véspera da morte, o jovem músico Ferdinand Hiller, admirador de Beethoven, cortou uma mecha de cabelos, que passou de geração em geração. Depois da Segunda Guerra Mundial, foi oferecida a um médico dinamarquês, Kay Fremming, por ter salvo judeus durante a ocupação nazi.
Com a morte de Fremming, os cabelos foram leiloados pela Sotheby"s em 1994. Os norte-americanos Ira Brilliant e Alfredo Guevara compraram-nos por 3700 dólares (3000 euros) e, em 1996, lançaram o Projecto Beethoven: pediram a William Walsh, do Instituto de Investigação da Saúde, em Naperville (EUA), para lhes fazer análises químicas. E ficou a saber-se que apresentavam concentrações elevadas de chumbo, cerca de 100 vezes superior ao normal, o que justificará os problemas de saúde e a irascibilidade de Beethoven.
O saturnismo, nome da intoxicação crónica por chumbo, afecta o sistema nervoso central (tremuras e paralisia), o tubo digestivo (dores intestinais violentas) e, nas crianças, origina problemas cognitivos.
"As análises aos cabelos de Beethoven mostram que sofria de saturnismo, o que pode explicar as doenças ao longo da vida. Também pode ter tido um impacte na sua personalidade e ter contribuído para a sua morte", revelava então Walsh. "Andava de médico em médico, à procura de uma cura para os seus males físicos. Sofria de problemas de digestão, dores abdominais crónicas, irritabilidade e depressão."
Naquela época, a água potável de Viena, onde o compositor passou os últimos anos de vida, continha chumbo e era vulgar usarem-se copos de chumbo. Mas parece pouco provável que a famosa surdez do compositor tivesse como origem a intoxicação. Toda a história, com o saturnismo incluído, é contada no livro Beethoven"s Hair, de Russell Martin (2000).
O homem enterrado perto de São Paulo, Brasil, com o nome Wolfgang Gehrard era realmente o Anjo da Morte de Auschwitz
O czar Nicolau, Alexandra e os cinco filhos - os restos mortais de dois não foram encontrados
Falta autorização para extrair amostras de ADN dos supostos ossos de Colombo na República Dominicana
Os restos ósseos de Cristóvão Colombo ou estão na catedral de Sevilha (Espanha), ou em Santo Domingo (República Dominicana) - ou noutro sítio qualquer. Nos últimos anos, a procura dos restos mortais do explorador por cientistas espanhóis foi das mais faladas. Mas, até agora, ninguém demonstrou para lá de qualquer dúvida onde estão.
Em Abril de 2003, a equipa de José Antonio Lorente e de Miguel Botella, da Universidade de Granada, abriu o túmulo de Sevilha e, durante seis dias, antes de o voltar a fechar, os cientistas obtiveram dados e amostras. Os ossos estavam muito fragmentados e, segundo uma entrevista de Lorente ao jornal El País, não chegavam para completar uma pessoa. Não está lá o crânio, por exemplo. "É possível que Colombo esteja repartido entre Sevilha, Santo Domingo e, quem sabe, num terceiro lugar. Os ossos sofreram muitas viagens e, antigamente, o mais normal era transportá-los em caixas do tamanho de um "dossier" actual. Naturalmente, para metê-los aí tinham de ser quebrados."
Colombo morreu em Valladolid, Espanha, a 20 de Maio de 1506. Deixou ordens para ser enterrado nas Américas, mas no Novo Mundo não havia uma igreja digna de o receber. Três anos após a morte foi mudado para uma capela no mosteiro da ilha Cartuxa, em Sevilha. Só em 1537 a nora de Cristóvão Colombo teve autorização para trasladar o corpo do explorador, e do seu marido, para a nova catedral de Santo Domingo.
Não seria ainda o seu destino final. Quando, em 1795, a Espanha cedeu à França a ilha que é hoje a República Dominicana, os ossos de Colombo foram mudados para terras espanholas: o caixão terá sido levado para Havana, em Cuba. Nova reviravolta em 1898, durante a guerra entre Espanha e os Estados Unidos: considerou-se melhor enviar os ossos de Cuba para Sevilha. Só que, em 1877, escavações na catedral de Santo Domingo revelaram uma caixa de chumbo com a inscrição "Homem ilustre e distinto, D. Cristóvão Colombo". Pensou-se que os espanhóis trocaram os corpos, e os ossos que se diz serem de Colombo foram para um monumento próprio.
Com tantas voltas, há ainda quem diga que os ossos em Sevilha são do filho de Colombo. Para tentar esclarecer esta grande controvérsia, a equipa espanhola pretende ter autorização para tirar amostras de ADN dos ossos na República Dominicana.

Sugerir correcção