Joaquim Sapinho tomou opções radicais. Falar na primeira pessoa. Nunca dar a palavra ao outro, excepto nos momentos, aliás belíssimos, em que uma mulher canta a Alah e uma jovem entoa hinos de louvor a Sarajevo (leia-se Sáráiiêva) e aos seus habitantes. Sustentar o plano até nele nada mais restar para ver. Prolongar o silêncio até ao limite da incomunicação. Prescindir de enredo ou mesmo de um mínimo fio condutor, para além daquele que releva do título do filme - "Diários da Bósnia". O desafio parece, por vezes, perdido. Sobretudo nos vários prolongados silêncios com planos fixos entre duas frases do narrador.
É o repórter quem isto escreve, claro. Admitindo desde já que a carga de informação desejavelmente metida num trabalho jornalístico não pode ser norma fílmica num género matricialmente cinematográfico. Dito isto, é preciso que fique claro: a viagem de Joaquim Sapinho pelos lugares do cerco constitui, verdadeiramente, uma peregrinação de grande sensibilidade (e enorme pudor) ao templo da raiva, da dor, do ódio, da vingança e do sofrimento humanos em que a Bósnia Herzegovina agonizou no início da última década do século passado.
O realizador desembarcou pela primeira vez, em 4 de Junho de 1996, em Sarajevo, onde um cerco de quase quatro anos tinha acabado de ser levantado "há pouco mais de três meses", como nos esclarece a sua voz.
Voltou dois anos depois, levando-nos dentro de um eléctrico que desliza, silencioso, em direcção aos arredores da cidade, e onde a sua câmara nos faz cruzar com uma sucessão de homens, mulheres, jovens passageiros. Rostos fechados, olhos fixos em coisa nenhuma, "como se ainda não tivessem tido tempo para esquecer".
Num dos raros "flashbacks" mais convencionalmente "informativos" do filme, o narrador guiarnos- á pelos sinais da devastação: as barricadas de carros nas ruas; as cruzes nos canteiros dos bairros habitacionais a assinalarem, por entre as ervas do chão ressequido, o nome e idade dos mortos; os buracos dos obuses sérvios nas paredes do parlamento; a foto suja de um grupo de amigos sentados no campo, é Verão, "nenhum sinal exterior de quem é sérvio, de quem é muçulmano".
A distinção religiosa numa comunidade de homens e mulheres entrelaçados pela geografia, pela língua, pela cultura, pelo sangue, assume, aqui, valor simbólico essencial. Nela radica a tragédia absurda, porém, dirse- ia, inultrapassável, de Sarajevo. Três momentos do filme ilustram-no de forma memorável.
Quando um grupo de mulheres reza e canta a Alah, "o Misericordioso" e a Sarajevo "onde vivem os bósnios, guardiães da fé islâmica". Apenas visíveis o rosto... e alguns sinais da outra realidade que comungam com as outras habitantes da cidade: os lábios pintados, os brincos de ouro apertados sobre o hijab que lhes cobre as orelhas, o fumo voluptuoso do cigarro sorvido e expirado no final da oração. (As mulheres muçulmanas de Sarajevo! As mesmas que durante o cerco se maquilhavam de manhã, vestiam as melhores roupas e saíam à rua. Uma forma, como me dizia Beslagic Zumreta, aquecida no seu casaco de peles, de dizerem ao "sniper chetnik" que as espreitava diariamente do seu esconderijo na colina, ali a umas centenas de metros: "Não me destróis o moral!")
Quando uma criança vestida como qualquer criança europeia dos arredores de uma cidade próspera coloca cuidadosa e sabiamente um lenço vermelho sobre a cabeça para enfrentar, correndo e saltando despreocupada, a neve que cobre o caminho até à escola. E quando num café um homem, possuído pela urgência de confiar a um estranho o segredo que lhe pesa na alma e no corpo, o convida a ir ver as ruínas da aldeia vizinha da sua.
Certamente o mais horroroso no plano histórico, este é, simultaneamente, o mais belo momento de todo o filme. Nos planos humano e cinematográfico. O homem diz-lhe (isto é, o narrador diz-nos que o homem - a quem só veremos em planos afastados ou em contra-luzes que dificultam a sua identificação -lhe contou) que os da sua aldeia souberam, um dia, dos planos dos da aldeia vizinha para os atacarem.
Nessa noite, de madrugada, a aldeia do homem sem rosto nem nome reconhecíveis atravessa o túnel que a separa da aldeia vizinha e faz o que, entende, há que fazer para evitar ser atacada. Nunca a palavra massacre é usada. Ela está escrita - esta a genialidade do processo narrativo de Sapinho - no pudor e na contenção das imagens filmadas (sem a presença do homem, que só vemos a entrar, e encontraremos, na volta, a sair do túnel): restos de casas de pedra, pedaços de paredes nuas, a erva que tapa o muro de um quintal, o silêncio e a neve a cobrirem o que foi uma aldeia de que ninguém saiu para contar o drama.
A neve, sempre, e o silêncio. Pouco depois, quando voa de helicóptero, ao lado de um general norte-americano, de Goradze para Sarajevo, o realizador fixa a neve "tão densa e tão alta" que esconde, nalguns sítios, uma imensa floresta de pinheiros. E diz-nos, na sua voz de narrador, do receio que o esquecimento se abata suavemente, como a neve, sobre tudo o que aconteceu na Bósnia. Lembrando-nos, na despedida, que a guerra de 1914-17 começou ali, numa ponte de Sarajevo. "Que as invasões otomanas da Europa foram feitas entrando pelos Balcãs. Que as conversões à religião católica, ortodoxa, e islâmica revelam uma eterna tensão entre o Oriente e o Ocidente. E que é aqui que se está a desenrolar um dos últimos episódios do conflito entre o bloco de Leste e o Oeste. Como se houvesse uma teu ctónica placa civilizacional em constante tensão na Bósnia".
De algum modo nos transmitindo, se ainda precisássemos, que é para o impedir que resgata, 10 anos depois, para a vida dos ecrãs, estas imagens de uma tragédia vivida e representada no nosso tempo no nosso continente.*Adelino Gomes esteve em Sarajevo, durante o cerco, representando o PÚBLICO numa iniciativa da organização Repórteres Sem Fronteiras, no âmbito da qual repórteres de 13 jornais europeus prepararam, semanalmente, ao longo do Inverno de 1993/1994, um filme de três minutos e uma reportagem cujos protagonistas eram, obrigatoriamente, habitantes do bairro muçulmano de Bascarija (ver PÚBLICO de 2.01.1994)