O Porto e os filmes
Mudas, Mudanças
Ano: 1979
Realizador: Saguenail
O Chico Fininho
Ano: 1981
Realizador: Sério Fernandes
Depois de duas décadas de deserto, coube a dois jovens realizadores, Saguenail e Sério Fernandes, fazer regressar as câmaras de filmar às ruas do Porto na viragem dos anos 70 para os 80
Nas décadas de 1960 e 70, o Porto foi um deserto de produção cinematográfica. O Cinema Novo ficou-se por Lisboa - mesmo que a bandeira do movimento, Os Verdes Anos (1963), tenha a assinatura do portuense Paulo Rocha. E Manoel de Oliveira atravessou esse deserto quase remetido ao silêncio: nos anos 60, filmou numa aldeia de Chaves (Curalha) uma encenação popular e secular da Paixão de Cristo, em O Acto da Primavera (1962), e, na década seguinte, ficou-se pelos estúdios, com O Passado e o Presente (1971), Benilde ou a Virgem Mãe (1974) e Amor de Perdição (1978); à sua terra natal, depois de O Pintor e a Cidade (1956), Oliveira só haveria de regressar já nos anos 90, com Inquietude (1998). A Revolução de 25 de Abril de 1974 praticamente não trouxe as câmaras de filmar para as ruas e praças do Porto - essas ficaram-se também por Lisboa e pelas terras alentejanas da reforma agrária.
Foi preciso esperar pelo final da década para o Porto voltar a emergir no grande ecrã. Curiosamente, isso aconteceu através de uma nova geração de cineastas, nascidos ou aportados à cidade e que aqui arriscam as suas primeiras obras. A primeira delas é uma curta-metragem, Alexandre e Rosa (1978), co-assinada por João Botelho (natural de Lamego, mas então a viver no Porto) e Jorge Alves da Silva. Durante cerca de vinte minutos, os dois jovens realizadores percorrem as ruas da cidade numa espécie de demanda documental e realista, à sombra do imaginário policial de Raymond Chandler.
Mas é um jovem francês, recém-chegado ao Porto atraído pelas notícias da Revolução, que haverá de verdadeiramente lançar um novo olhar cinematográfico sobre a cidade. Com Mudas, Mudanças (1979), Saguenail (pseudónimo de Serge Abramovici) propõe ao espectador a recriação de uma terra imaginária, acompanhando, ao longo de um dia, a deriva de uma estranha personagem (António Torres). Calcorreando as calçadas das ruas e os canteiros dos jardins, essa figura é uma espécie de anti-Alice na cidade das maravilhas - resultando estas da encenação puramente visual e surrealizante de contos populares. Depois desta sua primeira longa-metragem, Saguenail - que haveria de fixar-se em definitivo no Porto, onde ainda hoje, e em parceria com Regina Guimarães, prossegue a criação de uma obra pessoal e marginal - voltaria a filmar nas ruas portuenses imaginários de outros lugares, em Mourir un Peu (1986) e Amour en Latin (1988).
O primeiro resulta da montagem de várias curtas-metragens, em que o realizador manipula as texturas físicas da cidade (os passeios, os cafés, as frontarias e os telhados das casas...), encenando a partir delas o imaginário da aventura marítima e colonial portuguesa, com referências a figuras míticas como Vasco da Gama ou Camões.
Já a acção de Amour en Latin passa-se toda dentro de um café. Ao som da música de jazz da banda do contrabaixista... Pedro Abrunhosa (ainda sem óculos escuros), dezenas de personagens da noite portuense encenam as suas fantasias e os seus amores sonhados e trocados. Nestes primeiros filmes de Saguenail, o Porto é sempre ponto de partida para viagens por outros lugares.
Diferente é a aposta de outro realizador experimental, que tem feito do Porto tema e variação para os seus filmes. Trata-se de Sério Fernandes, que se estreou com O Chico Fininho (na foto, 1981), dando expressão cinematográfica à personagem criada pela dupla Rui Veloso/Carlos Tê na canção com o mesmo título. Coube ao actor Vítor Norte, num dos seus primeiro trabalhos no cinema, personificar esta figura que haveria de tornar-se emblema de um certo modo de ser e estar portuense nesses anos de ressaca de uma revolução vivida à distância. Roteiro sobre a vivência marginal da cidade na época, entre a Baixa e a Foz, O Chico Fininho vale, sobretudo, como um documento histórico-sociológico sobre o quotidiano do Porto nessa viragem das décadas de 80 para 90 - uma cidade e um tema a que Sério Fernandes continuaria também fiel, tanto enquanto cineasta como enquanto professor e "mestre" de uma geração de jovens estudantes de cinema na ESAP - Escola Superior Artística do Porto.