D. Afonso Henriques O "CHEFE DE BANDIDOS" QUE QUIS SER REI

Louco, brutal, pérfido, astuto, calculista, frio, romântico, visionário? Media dois metros e vinte? Era doente? Os historiadores não chegam a acordo quanto ao aspecto e à personalidade do nosso primeiro rei. Quem era o fundador da nacionalidade? Por Paulo Moura

Guilherme de Vitulo toma a palavra. "Não confio nesse homem. Temos razões para crer que tudo o que diz e promete não passa de mentiras", argumenta ele no seu vozeirão de pirata. Ouvem-se gritos de aprovação. Outros líderes cruzados, provenientes de Northhampton e de Bristol, também não confiam em Afonso Henriques. "Não será a primeira vez que ele nos vai trair", diz um.
Estamos num acampamento junto às muralhas de Lisboa, uma tarde quente do dia 29 de Junho do ano de 1147, no meio de uma reunião de chefes cruzados provenientes de todos os cantos da Europa. Ordem de trabalhos: decidir se ajudam ou não Afonso Henriques a conquistar a cidade. O rei português soube da passagem dos cavaleiros pelo Porto, a caminho da Terra Santa, respondendo ao apelo da Segunda Cruzada, e pediu-lhes auxílio. Para os convencer, prometeu mundos e fundos. Que havia um tesouro de valor incalculável na cidade (segundo a historiadora Dejanirah Couto), que o saque seria todo deles e que, depois da conquista, os cruzados que quisessem ficar teriam todo o tipo de privilégios.
A proposta era irrecusável excepto por uma razão: o monarca português não era de confiança. Alguns cruzados não acreditaram na história do tesouro. Tinham razão: era inventada. Outros estiveram na anterior tentativa de conquista de Lisboa, cinco anos antes, em que Afonso Henriques não cumpriu nada do que prometeu. Outros trazem agora à discussão um assunto ainda mais embaraçoso: o que se passou em Santarém.
Foi em Março desse ano. Os historiadores dividem-se nas interpretações, mas não quanto aos factos. Freitas do Amaral vê no que se passou a prova do engenho estratégico de Afonso Henriques. Alexandre Herculano fala da "perfídia" do monarca, e Oliveira Martins da "brutalidade medíocre" de um "chefe de bandidos".
Os factos: El-rei partiu de Coimbra uma segunda-feira com as suas tropas, sem as informar do seu destino. Chegados perto de Santarém, com cujos líderes mouros havia um acordo de tréguas, Afonso mandou um emissário à cidade avisar que elas ficavam suspensas por três dias. Era assim a tradição na época: havendo tréguas, era preciso avisar o inimigo, se o queríamos atacar. Isto passou-se na terça-feira, pelo que os mouros fizeram as suas contas: quarta, quinta ou sexta viria um ataque dos cristãos. Como não veio, no sábado foram todos dormir. Afonso Henriques atacou a cidade na noite de sábado para domingo.
Um cruzado está precisamente a contar esta história, na reunião em frente a Lisboa, quando o pirata normando, o gigantesco Vitulo, toma uma decisão: não apoiará Afonso. Primeiro, porque não acredita que ele seja rei. Depois, porque "conquistarei mais riquezas a assaltar navios pelo caminho daqui até Jerusalém do que a saquear Lisboa". É mais ou menos isto que diz o valente cruzado que o Papa Eugénio III enviara ao Oriente para devolver o Santo Sepulcro à Cristandade. Neste momento, o chefe dos ingleses, Herveu de Glanvill, a quem, segundo alguns historiadores, Afonso Henriques terá prometido secretas e exclusivas benesses, faz um golpe de teatro: "Recordo no meu espírito a piedosa lembrança de ter visto ainda ontem unidos junto de Portugal povos de tantas nações e homens de tanta sabedoria assinalados com a Cruz do Senhor", começa ele. E irrompe numa pungente invocação dos ideais cristãos e de Cruzada, da obrigação de combater os infiéis e dos laços de sangue que unem ingleses e normandos. "Visto que todos somos filhos da mesma mãe, é como se recusassem o seu serviço de mútuo préstimo, a língua ao palato, a boca ao ventre, o pé a seu igual e a mão à mão" diz ele, tremendo de eloquência. E refere-se a seguir a D. Afonso Henriques: "Ainda que ele fosse culpado aos vossos olhos, como antes dissestes, por amor de Deus e deveríamos sofrer, para que um lucro maior alcancemos". E termina a chorar, ajoelhado aos pés de Guilherme Vitulo, declarando que se submete a ele, que o aceita como chefe, desde que aceite ficar, para ajudar o rei português. "Se pois não quiserdes mostrar-vos como nossos companheiros, mostrai-nos, ao menos, como nossos senhores".
Esmagado pela emoção, o colossal Vitulo ergue no ar Herveu e, lavado em lágrimas, acede a ficar. Mas com uma condição: Afonso Henriques terá de escrever, no contrato que vão assinar, que "não inventa nenhum pretexto para faltar ao combinado". Na realidade não inventaria, porque já tinha inventado: não havia nenhum tesouro fabuloso em Lisboa.
Mas neste momento, com 39 anos, depois de se ter armado cavaleiro por conta própria, depois de ter derrotado a própria mãe numa batalha, de ter sido declarado rei, de ter obtido o reconhecimento do Papa para o novo reino, de ter casado, há um ano, com Mafalda de Sabóia, por conveniência, Afonso é um homem comprometido com um projecto. Segundo Freitas do Amaral, na sua biografia de D. Afonso Henriques, ele afirma-se já, mais do que como guerreiro, como político e estadista. Um político hábil, que manobra e negoceia, muitas vezes com aparentes frieza e falta de escrúpulos, e põe invariavelmente à frente dos interesses pessoais os do país que quer construir. Porque teve realmente a visão de fundar um reino.

Os amores do reiHá razões para crer que Afonso Henriques viveu uma grande paixão. Foi em 1139, aos 30 anos, que conheceu Flâmula Gomes. Era jovem, bonita e inteligente, dizem os cronistas. Mas tinha um problema: era sobrinha de Fernão Peres de Trava, o galego amante da mãe de Afonso Henriques, D. Teresa. Casar-se com a bela Flâmula seria portanto unir a coroa de Portugal à nobreza da Galiza, o que era mal visto pelo rei, pela nobreza do reino e pelo clero de Braga. Para evitar essa união, Afonso já tinha combatido e mantido presa a vida inteira a própria mãe. Pois teria também de sacrificar Flâmula. Viveu com ela, tiveram dois filhos, mas depois foi decidido pelos conselheiros do rei escolher uma donzela nem da Galiza nem de Leão ou Castela para o casamento. A Casa de Sabóia, com territórios entre a França e a Itália, era suficientemente longe, e o conde de Sabóia, empenhado na Segunda Cruzada, poderia ser uma ajuda preciosa para conquistar Lisboa. A infeliz Mafalda de Sabóia, com talvez não mais de 16 anos, chegou a Coimbra, para casar, em 1146. Deu à luz sete filhos em 12 anos e morreu no parto do último.

O desastre de BadajozCom a excepção da batalha de Badajoz, em 1169, Afonso Henriques conduziu todas as suas acções com êxito em função do objectivo: tornar Portugal independente e alargar o território.
Em 1169, tinha Afonso já 60 anos, foi chamado pelo caudilho Geraldo Sem Pavor para o tirar de apuros na conquista de Badajoz aos mouros almóadas. Ora a cidade pertencia, na península, à esfera de influência de Fernando II, Rei de Leão, que, desagradado com a iniciativa de Afonso, se aliou aos mouros e cercou os portugueses. Afonso Henriques foi ferido e preso. Mas isso foram os anos da decadência. Pouco depois, o filho D. Sancho assumiria responsabilidades governativas.
Agora, neste Verão de 1147, Afonso Henriques sabe o que quer e como o obter. Após um cerco de três meses, os cruzados e as tropas do rei (cerca de 30 mil) atacam Lisboa. Os mouros rendem-se e entregam ao rei de Portugal, como prova, um grupo de reféns. Rebenta um tumulto entre os cruzados. Corre o rumor de que Afonso Henriques quer a cidade para ele e que não vai haver tesouro para os nobres cavaleiros da Cruz. Achando-se traídos, os normandos, alemães e flamengos pegam em armas e preparam-se para atacar o acampamento dos portugueses.
Afonso Henriques, confrontado com a maior ameaça à sua liderança que alguma vez sofreria, toma uma decisão temerária: anuncia que, se os cruzados amotinados não depõem as armas e aceitam o combinado - que terão direito ao saque mas não à posse da cidade de Lisboa - ele, Afonso, com todos os 15 mil portugueses, abandonarão imediatamente o cerco. "Prefiro perder Lisboa do que a honra", disse Afonso Henriques, enquanto os seus homens já depunham as armas, ameaçando regressar ao Norte. Parece que os cruzados (incluindo o gigante Vitulo) perceberam finalmente com quem estavam a lidar e juraram fidelidade ao rei dos portugueses enquanto estivessem no seu território. O massacre de Lisboa começaria logo a seguir.

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