As trilobites gigantes de Canelas estão à sua espera
Fósseis únicos em todo o mundo têm sido encontrados numa pedreira de ardósias do concelho de Arouca, e agora chegou a vez terem direito a um museu
Há 465 milhões de anos, Portugal estava perto do Pólo Sul, numa das margens do supercontinente Gonduana. E Canelas, uma aldeia do concelho de Arouca, no distrito de Aveiro, era uma zona marinha onde viviam trilobites. Desapareceram todas da Terra há 250 milhões de anos, e só restam os fósseis como prova da sua existência. Esta semana, as trilobites de Canelas estiveram no centro das atenções: ontem foi inaugurado o Centro de Interpretação Geológica de Canelas e, na quarta-feira, abriu uma exposição em Lisboa, no Museu Geológico. Tanto em Lisboa, como em Canelas, as trilobites estão à espera dos visitantes. Poderão vê-las porque o sócio-gerente da pedreira de ardósias onde foram encontrados os moldes das suas carapaças fossilizadas, Manuel Valério, tem preservado este património.
Até agora, foram descobertas ali 19 espécies - duas novas para a ciência, sublinha o geólogo Artur Abreu Sá, da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, em Vila Real, e o responsável científico pelo Centro de Interpretação Geológica de Canelas. "Não temos dúvidas de que duas espécies são novas. Não conhecemos outras trilobites com aquelas características."
Uma foi atribuída ao género Basilicus, a outra ao género Nerudaspis, com um grande ponto de interrogação à frente. "Enquadrámo-la nesse género, que já existe, mas temos dúvidas. O próprio género pode ser novo", diz Artur Sá.
As trilobites de Canelas, do período Ordovícico Médio, são conhecidas em todo o mundo por quem se interessa por estes artrópodes - grupo de animais com o corpo segmentado, que inclui os insectos, as aranhas ou os crustáceos (o nome trilobite deve-se à sua divisão transversal em três lobos). "É um património único, com um valor científico extraordinário, devido às condições de preservação e ao gigantismo. É um gigantismo artificial."
Com isto, Artur Sá quer dizer que as trilobites de Canelas foram ampliadas pela acção da tectónica de placas. Há 400 milhões de anos, o Gonduana já estava a rodar e a margem onde se situava Arouca encontrava-se já próxima da faixa intertropical, mas ainda no Hemisfério Sul. "As condições que permitem que a rocha abra como as folhas de um livro foram induzidas pela tectónica. Os fósseis nas rochas foram esticados e ficaram com dimensões grandes, que não têm a ver com as condições ambientais em que os bichos viviam."
Já seriam grandes, por viverem em águas frias, perto do Pólo Sul, mas as formas esticadas podem chegar a 60 centímetros. Sabe-se que os fósseis das trilobites foram ampliados através da comparação com indivíduos da mesma espécie recolhidos em rochas da mesma idade noutros locais, como nos Montes Toledo, em Espanha.
Tal como as moscas - afinal pertencem ao mesmo grupo -, tinham olhos com muitas lentes. Numa situação de gigantismo, mantém-se o número de lentes característico de uma espécie, só que a deformação tornou-as muito grandes.
Apesar de haver fósseis de trilobites noutras zonas de Portugal, outra particularidade das de Canelas está em aparecerem muitos exemplares em associação. "Isto é novo em termos de conhecimento das trilobites e evidencia comportamentos sociais. Pode estar relacionado com mudas colectivas de carapaças ou acasalamento."
Por tudo isto, e porque a pedreira recebia tantas visitas de estudo, de escolas a universidades, Manuel Valério teve a ideia de criar o Centro de Interpretação Geológica de Canelas, mesmo ao lado da pedreira, pago em grande parte pela empresa, para expor os fósseis mais espectaculares. "Recolhemos milhares de exemplares, mas na exposição só vão estar os melhores - uma ou duas centenas", conta o empresário. O centro tem ainda uma pequena biblioteca, um auditório, um local para receber cientistas e monitores.
Espécie de 70 centímetros em Lisboa
Um caso interessante é o da Hungioides bohemicus (foto mais pequena). Descoberta no início do século XX na Boémia, na actual República Checa, tinha sido caracterizada só com peças soltas, da cabeça e da cauda. "Em Canelas, além de gigantes, os exemplares estão completos. Os colegas checos ficam alucinados." Um dos exemplares chega aos 50 centímetros.
A Hungioides bohemicus é, aliás, uma das vedetas da exposição de Lisboa, até 28 de Novembro. Na mesma laje, encontram-se dois exemplares - o que é único no mundo, sublinha o director do Museu Geológico, Miguel Magalhães Ramalho. Essa laje pertence agora ao museu. "É, sem dúvida, o fóssil de maior valor científico que saiu da pedreira até hoje", acrescenta Artur Sá.
A exposição de Lisboa conta com exemplares emprestados pela pedreira de Canelas, ou não se chamasse Trilobites gigantes de Arouca, além de outros pertencentes ao museu. Pode ver-se ali dois pedaços da que, até há poucos anos, era a maior trilobite do mundo.
Foi descoberta nos finais do século XIX por um dos pioneiros da geologia portuguesa, Joaquim Nery Delgado, em Valongo, a uns 40 quilómetros de Arouca. Chamou-lhe Uralichas ribeiroi, em honra de outro pioneiro da geologia, Carlos Ribeiro, mas acabou por ter o nome Uralichas hispanicus, dado por dois paleontólogos franceses que a descreveram primeiro, em 1874.
Os 65 a 70 centímetros de comprimento da Uralichas hispanicus só foram destronados em 1998, com a descoberta no Canadá da Isostelus rex, com 72 centímetros. São fósseis como estes que, aos poucos, revelam o passado da vida na Terra.