Ciclo Otar Iosseliani O favorito da lua em Lisboa

O realizador georgiano vai estar presente,
hoje e amanhã
na Cinemateca,
no lançamento
da retrospectiva
da sua obra

Otar Iosseliani: O Mundo visto da Geórgia/A Geórgia vista do Mundo é o título da retrospectiva que a Cinemateca Portuguesa dedica a partir de hoje, em Lisboa, ao realizador de Os Favoritos da Lua (1984)Na carreira do georgiano Otar Iosseliani (n. 1934), podemos detectar uma imensa corência na exploração de uma acção irrisória, quase sem palavras, em que as estratégias de um certo cinema mudo afloram, bem como uma infinita e indizível tristeza. No centro do seu cinema avulta cada vez mais a importância de um filme como A Caça às Borboletas (1992), como uma espécie de feixe distribuidor de temáticas e de gags: em complexa contiguidade, as influências de uma comédia de costumes "à la Renoir", matizada pela farsa em surdina, enraizada em Jacques Tati, ou pelas rimas internas com L"Atalante, de Jean Vigo, bem como as reminiscências de um anarquismo aristocrático de origem eslava.
É claro que a leitura das suas histórias exemplares se revestem, ainda, de conotações de classe, numa revisita que tem antecedentes gloriosos em filmes como À Nous la Liberté, de René Clair, ou em Tempos Modernos, de Charlie Chaplin: a classe operária como vítima de uma desumanização e de uma mecanização, que rouba a alma, paredes-meias com a exibição de uma nostálgica ausência de um mundo que se perde num passado rememorado e longínquo.
Segunda de Manhã (2002), o último dos seus filmes, até à data (e título que vai abrir o ciclo, hoje às 21h30, com a presença do realizador), funciona com a perfeição e a meticulosidade do déjà vu: reconhecem-se personagens - a velha avó, fechada no seu velho mundo, a beber vinho licoroso, ecoa as velhinhas czaristas de A Caça às Borboletas, o operário que foge, uma segunda-feira de manhã, à monotonia do seu emprego e da sua vida, rima com uma imensa galeria de "vagabundos", "mendigos" e transgressores de outros filmes. No centro desta viagem do protagonista, para escapar ao quotidiano tristonho, estão também duas das características fulcrais do cineasta: a insistência na incorrecção política (veja-se a importância dos sinais de proibição de fumar, unindo os operários da fábrica em França e os trabalhadores do estaleiro da Marghera, em Veneza) e o gosto pela deambulação, como se a fuga ao acabrunhamento e à angústia de um quotidiano infeliz dependesse da capacidade para conhecer outros horizontes, numa viagem sem rumo nem destino. O carteiro parece-se com a personagem de Jacques Tati em Há Festa na Aldeia, a tristeza é profunda e a felicidade impossível. O mundo abre-se para uma Veneza de cenário, belo como a encenação de antigos esplendores.

Metáforas negras da condição humana
Qualquer filme do realizador permite detectar este exercício, na criação de metáforas lucidamente negras da condição humana, a braços com a sua pequenez. Na retrospectiva, agora dedicada ao cineasta, teremos a possibilidade de encontrar as raízes deste universo, desde Folhas Caídas (1966), a primeira longa, subtilmente retratando a vida na Geórgia, nos tempos da União Soviética, até aos mais paradigmáticos, Era uma Vez um Melro Cantor (1970), com um herói "negativo", a indiciar muitas das personagens transgressoras por vir, ou Pastoral (1975), partindo da etnologia para uma questionação profunda da modernidade. Este registo, entre o documental e o alegórico, prolonga-se em Fez-se Luz (1989), filmado em África, mas de repercussão universal.
Os Favoritos da Lua iniciara, entretanto, a sua carreira "francesa" e a sua galeria de vagabundos subversivos, de burlescos marginais, reflectores de uma intervenção anarquizante no tecido social, que encontraria em A Caça às Borboletas e em Adeus Terra Firme (1999) a perfeição de um "modo de usar a vida" como processo de descoberta e de experimentação, entre a melancolia do passado "inútil", mas sedutor, e o absurdo de um presente tresloucado. Neste contexto, Bandidos (1996) encaixa esta desesperada perturbação, numa crónica da Geórgia, um caleidoscópio histórico, jogado em vários tempos, com uma imensa ferocidade e um forte sentido de uma "revolução permanente" das mentalidades.
Ver a obra de Iosseliani, hoje em contexto, possibilita a infinita descoberta de uma lúcida alegria de viver, matizada por uma desesperada vontade de destruir um mundo que permitiu que a hipocrisia social fosse o santo e a senha. Pelo mundo lunar, e lunático, do cineasta georgiano passam, em essência, as contradições da modernidade: mordaz e terno, iconoclasta e "tradicionalista", Iosseliani encena a nossa tragédia de vivermos entre pulsões irreconciliáveis, de aspirarmos a uma felicidade sem barreiras, encarcerados em classes, em regras, em protocolos de convivência social. Poucos universos desvelam, como este, o difícil percurso do humano, com problemas de Homens, abandonados à sua sorte por uma divindade descuidada (e ausente).

Otar Iosseliani:
O Mundo visto da Geórgia/A Geórgia vista do Mundo
Segunda de Manhã. Hoje, às 21h30 (com a presença do realizador)
LISBOA Cinemateca Portuguesa. Rua de Barata Salgueiro, 39. Tel. 213596200. Até 18 de Julho.

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