Depois do assombroso "Os Super-Heróis" (2004), que trouxe Brad Bird ao seio do estúdio, "Carros", retorno à direcção do fundador John Lasseter, é o mais recente estádio dessa evolução, explorando de maneira ainda incipiente mas francamente entusiasmante todo um novo território habitualmente vedado à animação.
De facto, quase apostamos que os miúdos se vão aborrecer de morte com o que é (como quase todos os filmes da Pixar e, antes disso, da Disney nos seus tempos áureos) um "Bildungsroman" iniciático sobre a aprendizagem da amizade e do respeito e um filme sobre o (re)encontro com a família. Pelo simples facto de que Lasseter e o seu co-realizador Joe Ranft (falecido antes do final da produção), numa sublime ironia para um filme protagonizado por carros, nunca carregam no acelerador nem metem mudanças acessórias para mostrar o gás todo que o veículo pode dar. Há duas sequências electrizantes - duas corridas de automóveis - na abertura e no fecho do filme; tudo o resto se passa na terreola pachorrenta de Radiator Springs, Carburator County, onde nada acontece e, por isso, é o sítio ideal para Faísca McQueen (Owen Wilson no original, Pedro Granger na dobragem portuguesa), um carro de corrida arrogante e convencido, com os olhos no título da temporada, arrefecer o motor durante uns quantos dias e perceber com a ajuda dos locais que a vida é mais do que andar a correr atrás da taça.
Isso não faz de "Carros" uma fita que encha o olho aos miúdos - ainda bem, dizemos nós, porque a fasquia da Pixar nunca foi encher o olho mas sim contar histórias usando a animação como outros usam actores e câmaras. É uma lição tanto mais importante quanto a maior parte da concorrência continua a achar que basta uma cascata de gagues herdados da "sitcom" televisiva para fazer uma longa animada (quando foi isso que deitou por terra "Shrek 2" depois de um excelente primeiro filme, ou que condenou "Madagáscar" à irrelevância, apesar do êxito de bilheteira); eis o estúdio fundador da animação digital a ir na direcção oposta e a basear todo um filme na interacção entre personagens que aprendem alguma coisa umas com as outras - mesmo que as personagens sejam carros antropomorfizados. É uma bela lição - até para a própria Disney, com a qual a Pixar teve uma relação complicada antes da multinacional capitular e, comprando o estúdio digital, colocá-lo à frente dos destinos da sua divisão de animação. Como quem reconhece derrota às mãos do "inimigo" que soube apanhar o "espírito Disney" melhor que a própria "casa-mãe". E o cinema, vá lá, é também sobre saber contar histórias.
route 66.Dito isto, a história de "Carros", admita-se, não é grandemente original nem inspirada, o que, para já, trouxe ao estúdio as primeiras críticas menos positivas na sequência imbatível de êxitos iniciada com "Toy Story - Os Rivais" e um êxito comercial um tudo nada abaixo das previsões - o que é mais sintomático das expectativas que rodeavam o filme do que uma reflexão da sua real qualidade. Até porque "Carros" é, mais do que um ponto de chegada ainda dentro do formato narrativo da animação tradicional (como o foi "À Procura de Nemo", 2003) ou de partida em direcção a um cinema menos limitado à convenção da animação (como o foi "Os Super-Heróis"), um ponto de passagem, "circuito de testes" se se quiser.
Sintomático, sim, é o enraizar desta história na "heartland America" que, de alguma maneira, não se adivinhava nos filmes anteriores do estúdio, muito mais "universais" do que esta aventura situada no universo mais regionalista das corridas de "stock-cars", que não atravessa facilmente o oceano. Uma das personagens principais, o reboque Mate, tem aliás na versão original a voz do comediante sulista Larry The Cable Guy, cuja popularidade americana se explica pelo seu humor "redneck"/"blue collar" que o filme integra com inteligência e contenção, regionalismo que se perde na contudo excelente dobragem portuguesa - e este é um filme cuja dimensão mítica apenas é inteligível visto na versão original (mais um ponto contra levar as criancinhas).
Digamo-lo, então, abertamente: "Carros" é um filme intrinsecamente, orgulhosamente americano, cheio de piscadelas de olho que serão mais apreensíveis pelo espectador do lado de lá do Atlântico, mergulhado a fundo no imaginário visual do automóvel e dos EUA como uma enorme estrada de costa a costa - não por acaso, Radiator Springs fica situada na velha Route 66, a "estrada-mãe" que cortava o país-continente e serviu de motor e palco para tantos sonhos e tantas ambições (europeias e americanas), deixada para trás quando a auto-estrada privilegiou a velocidade em detrimento da viagem, numa mistura de elegia nostálgica pelas velhas "smalltowns" mitificadas em tanta produção hollywoodiana de série B (difícil não sentir aqui alguns ecos desse seminal "A Última Sessão" de Peter Bogdanovich, mesmo que a um outro nível) e censura subentendida à sua substituição por subúrbios impessoais e pré-fabricados. Curiosamente, em quase nenhum momento de "Carros" damos pela presença de um automóvel - vá lá - "moderno": todo o design do filme remete para as eras de ouro do design industrial americano, das velhas banheiras cromadas dos anos 1950 aos "muscle cars" dos anos 1960 e 1970, tal como toda a arquitectura de Radiator Springs evoca o modernismo "fifties" da "smalltown".
ornament valley.Estamos, então, num universo intemporal, celebrador de uma invenção e de um engenho criativos e personalizados que parecem não ter lugar nos nossos dias de produção em série, mas também de um "retorno à natureza" nas extraordinárias paisagens fotorrealistas que invocam os grandes "westerns" Fordianos, com os canyons grandiosos e ocres de Monument Valley aqui jocosamente rebaptizados de Ornament Valley. Fotorrealismo, sim, mas sem nunca perder o hiper-realismo que lhe dá o necessário cambiante artificial para que "Carros" seja um prodígio artístico realizado com aquela atenção ao detalhe que configura a marca pessoal do artesão e o eleva acima da reprodução industrial.
Porque, de facto, se há coisa de que "Carros" não tem nada é de industrial: a sua narrativa é a de alguém (mesmo que, no caso, um carro) que aprende o que é ser um indivíduo e compreende o sentido de herança, de tradição, de passado, contada com uma notável atenção à vibração emocional das personagens, magistralmente transmitida pelas nuances encontradas pelos animadores. Porque, de facto, não são máquinas que fazem estes filmes, mas sim gente de carne e osso que põe algo de si nas linhas de código que compõem estas 24 imagens por segundo. A Pixar sempre soube fazer dos seus heróis - brinquedos, peixes ou monstros - seres de uma vulnerabilidade transcendentemente humana. "Carros" não é excepção. Claro que não é a obra-prima do estúdio, mas que seja "apenas" um belíssimo filme - e um dos melhores que pudemos ver até agora num 2006 parco em cinema de primeira água - já é razão mais do que suficiente para celebrarmos a infinita invenção criativa de John Lasseter e da sua equipa. É favor atestar o depósito.