Maria Gabriela Llansol, a escritora "discreta" reaparece em público
A autora de Um Beijo Dado Mais Tarde, que raramente participa em eventos públicos, foi ao Porto apresentar nova obra
Maria Gabriela Llansol é considerada uma das vozes "mais secretas e discretas na literatura portuguesa contemporânea". Revelou-se uma autora reservada desde a publicação do primeiro livro - Os Pregos na Erva, em 1962 - e os seus leitores fiéis habituaram-se a não a ver em encontros literários ou nas páginas dos jornais.Os seus legentes - como lhes chama esta autora que nasceu em Lisboa em 1931 - encontram-na sobretudo nos textos. Anteontem, contudo, abriu mão do silêncio da sua casa em Sintra e foi à Cooperativa Árvore, no Porto, participar no lançamento do seu mais recente livro: Amigo e Amiga - curso de silêncio de 2004 (Assírio & Alvim). Leu passagens e, no fim da sessão, sentou-se junto do público. Mostrou total disponibilidade para expor ideias e responder a perguntas.
"Não estou muito à vontade a falar porque vivo muito solitariamente", começou por dizer a autora de Um Beijo Dado Mais Tarde, Grande Prémio de Romance e Novela APE/IPLB de 1989. Confessou que à partida ficou "muito triste" ao saber que os exemplares não chegariam a tempo do lançamento (acabaram por ser entregues à ultima hora), mas explicou em seguida como percebeu ser vão o seu desencanto. É que, ao assistir à apresentação do escritor Pedro Eiras, seguida de imagens e leituras sobre a música de Bach, percebeu que afinal "o texto estava presente - e maior".
Amigo e Amiga - curso de silêncio de 2004 é, de alguma forma, um diálogo póstumo entre dois amantes. Após a folha de rosto, surge uma fotografia do casal de mãos dadas, Llansol e Augusto Joaquim. Uma carta escrita para o companheiro "ao vivo para o vivo", como disse Pedro Eiras. Não um texto de despedida. Uma missiva que também testemunha o amor de "uma relação que não circunscreve dois seres à banalidade", confidenciou a autora aos leitores, mas sim uma união que permite ascender a "outras dimensões", como a paz, a bondade e a inteligência. "É isto que permite sobreviver os seres que partem", concluiu.
Na adenda do livro, que reúne 181 fragmentos, pode-se ler: "Hoje, terminei o ciclo do dia; e eu cavei energicamente a minha terra; lancei-lhe sementes para o futuro ao prosseguir o rito da ressuscitação para os textos de Nómada. [...] Como não podia comunicar-lhe isto de viva voz, e face-a-face, e precisava de um ouvido concreto, lancei esta confidência às águas do Curso de Silêncio que certamente há-de encontrar alguém legente que saiba do que falo."
Antes da conversa com o público, as vozes de João Barrento e Maria Etelvina Santos surgiram justapostas sobre fotografias da autora ou imagens da natureza projectadas numa tela. Graças a um aparelho de som, violoncelos davam corpo à melodia de Bach - o compositor é uma figura convocada por Llansol para os seus textos, como Nietzsche, S. João da Cruz, Müntzer, Bach, Camões e Pessoa.
Uma leitora comentaria mais tarde o quão curioso era Bach surgir associado à ideia de um jardim, uma vez que a sua música foi realmente utilizada como inspiração para o desenho de um parque. Llansol respondeu que "é muito natural" esta coincidência, uma vez que "todos os vivos pujantes comunicam entre si". Vivos que, para Llansol, podem ser da ordem humana, vegetal, mineral ou textual, sem nenhum critério que os hierarquize entre si. O encontro do texto com o seu legente, por exemplo, é para Llansol uma relação entre vivos. "Há uma adequação entre quem escreve e quem mais tarde lê", acredita Llansol, para quem "um legente é sempre um reactivo, que lê rompendo caminhos".
"Bach é um autor que me diz muito, tem matéria figural para mim", disse Llansol, recordando a sua aparição em Lisboaleipzig, composto por O Encontro Inesperado do Diverso e O Ensaio de Música (Rolim 1994). Quer isto dizer que Bach não surge na escrita llansoliana como personagem histórica propriamente dita, mas como imagem que, por ser dotada de luz, tornou-se figura (Llansol não utiliza o termo personagem). "Nós todos somos um mais e um menos, e a figura é a transformação no mais", precisou a escritora, que viveu cerca de 20 anos na Bélgica, dedicando-se a experiências pedagógicas e ao trabalho manual.
Amigo e Amiga - curso de silêncio de 2004 será apresentado em Lisboa pela escritora Hélia Correia, no dia 29, na Livraria da Assírio & Alvim. Também nessa ocasião Llansol pretende encontrar os legentes.